POR TRÁS DE UM NADA, HÁ UM TUDO
Acordou e ficou na cama tentando se lembrar de quantos tetos já tinha visto na vida, além daquele branco. O primeiro que lhe veio à mente foi o de um pé de juazeiro plantado nas terras da tia. Lembra-se que ao se deitar numa rede, avistou o céu ao fundo servindo de inspiração para uma posterior pintura. Concentrou-se nos detalhes do entrançado dos galhos, folhas e espinhos vistos de baixo para cima. Prestou atenção a alguns filetes dos raios solares furando a copa igual a um globo de luz fixado num teto de boate. As redes amarelas, verdes e misturadas participavam da balada dos paradões.
Entre o tronco principal e o outro que se bifurcava, apareceu uma lagartixa fazendo parelha com o papagaio de estimação que estava de alegoria. Lembrou-se do calor sem ventar criando motivos para que a ave gostasse de aproveitar a sombra solidária.
Era mês de pinha na serra, e a sua tia o prendia pelo gosto da fruta-do-conde ser uma das mais doces já provadas. Uma bacia cheia o esperava para fazer valer seu discurso, e as que estavam já se desmanchando escondiam-se dentro do armário tentando evitar que outras visitas as encontrassem.
Ao lado, outras redes aguentavam os roncos dos de barriga cheia com lençol no rosto. As conversas gaiatas haviam acontecido antes do desfile dos pratos, e aquele momento era o dos repousantes das estacas afixadas para os ganchos apoiadores da sesta.
Não tinha sono para acompanhar os vizinhos, e permaneceu olhando formigas subindo pelo tronco. Uma fila delas o fez compará-las a um pelotão de patriotas alienígenas. Lembrou-se do tempo em que jogava lagartas só para vê-las se contorcendo no ringue do formigueiro.
Alguns galhos também suportavam uns besouros miúdos que não se atreviam a ficar no meio da marcha. Essa pequena amostra de uma selva ao redor de casa trazia tranquilidade e imaginação de como é diferente o meio rural da sua realidade. Até quando poderá usufruir daquilo? São perguntas que desviam a resposta pelo agradável cheiro do lençol branco lavado com sabão de coco e estendido para só depois ser enxaguado.
Havia alguns juás no chão esperando os outros caírem para sentirem também o desprezo de não serem da classe especial. Alguém mostrou que estava vivo pelo inconveniente som expresso como brincadeira de odor espantador de nariz sensível. Um outro respondeu fazendo os do lado de baixo se levantarem praguejando de doente.
Foi naquele dia que na conversa das mulheres ficou registrado uma avó dizendo o que sentia, e que já tinha dito ao marido: fique logo bom dessa gripe para nós... fez um gesto batendo na palma da mão com a ponta dos dedos da outra. Risos ainda hoje rodopiam no terreiro quando o assunto vem à baila.
Quer dormir um pouco, mas ao mesmo tempo tenta ficar alerta deliciando-se com aquelas imagens que surgiram sem ensaio. Quase não se escuta os pássaros, devem estar na beira do rio ou na manga do açude. A temperatura só não está maior porque houve bom inverno e a plantação começa a mostrar seus frutos no tapete verde. O ar da graça fica por conta do som do chocalho blém blém ao longe.
O outro teto lembrado foi o do interior da casa da infância. Olhando para as frestas das telhas, tinha início a contagem das ripas e dos caibros enquanto não fechava os olhos. Uma telha de plástico, no meio das outras de cerâmica, trazia o clarão da lua fazendo-o imaginar se a luta de São Jorge com o dragão já havia terminado.
Às vezes, o bater dos pingos da chuva lá fora, com ventos frios e rasteiros dentro de casa, justificavam a retirada do cobertor da cômoda. Enquanto não apagavam a lâmpada pendurada pelo fio preto, quem servia de entretenimento eram as pequenas borboletas girando ao redor do perigo de entrarem no ouvido sem algodão.
Naquele tempo, o termo não existia, mas já havia os sem-teto debaixo dos pontilhões nos quais ele adorava deixar cair pedaços de poli e correr dos gritos elogiosos à senhora sua mãe.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 25.10.2023 – 10h55min.
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