terça-feira, 24 de outubro de 2023

ALÉM DO BOA NOITE CINDERELA

 


ALÉM DO BOA NOITE CINDERELA


Ela aparecia na janela todas as vezes que o escutava chamando-a pelo nome. Deve estar querendo algo mais do que conversar, pensava enquanto participava do encontro com monossílabos desinteressados, porém achava bom ser cortejada por aquele.

Após o cortejo que a desarmava, instalava-se uma melancolia por se lembrar que prometera a si mesma jamais se casar com alguém tão pobre. Vou precisar voltar aos ensaios. Ajudando no fechar da janela, estava a mãe que havia se aproximado esgueirando-se da vista do moço.

Seu chá está pronto, e se quiser adocicado eu trouxe o açucareiro. Ela mostrava-se sorridente esquecendo-se que estivera a ser tentada por aquele que pouca importância tinha junto ao seu querer. Da próxima vez, é só não abrir a janela que ele vai embora. Pensava em fazer isso, porém seu orgulho a impedia de deixar de praticar o poder da sedução treinada pela professora de etiqueta. Prefiro sem doce. Trouxe seus biscoitinhos preferidos. Mãe e filha ficavam tentando encontrar assuntos que as fizessem sair da rotina. Vou precisar que a senhora passe a limpo este trabalho. Terminado o chá, ela voltou-se para a mesinha de estudo agradecendo por mais um incentivo quente numa tarde tão fria. 

Mudaram-se para uma cidade distante e isso lhe trouxe a necessidade de aprender bem mais do que no antigo lugarejo. Na bagagem, ela também levava a lembrança do rapaz que ficou na calçada para vê-la ir. 

Assim que se estabeleceram na nova moradia, a família tratou logo de matricular a moça numa escola de culinária. Nos primeiros dias, seu silêncio foi aproveitado para se concentrar nas receitas apelidadas de fórmulas mágicas por fazer as pessoas mudarem o comportamento depois de saboreá-las. 

Quando começou a se destacar entre as colegas, seu pai providenciou utensílios domésticos necessários para que ela pudesse praticar sua arte culinária sem esquecer a musical. Assim, logo que chegava das aulas corria para o laboratório doméstico preparando o que tinha imaginado no caminho de volta. Duas vezes por semana, os grupos eram incumbidos de mostrar um prato novo para um júri composto pelos importantes. 

Já havia se adaptado à nova vida quando começou a ganhar vários prêmios pela melhor sobremesa, e daí veio a ideia de montar uma confeitaria. Seu hobby preferido era saborear sorvete diante do espelho se imaginando passeando nos canais de Veneza.

A loira agora deixava-se levar pela capacidade de ir às compras e voltar sozinha à noite. Às vezes, ia ao teatro sonhar com uma plateia lhe aplaudindo de pé.  Ao voltar, já nem se lembrava da cozinha. Estabelecia-se em frente ao piano e varava a madruga repetindo as peças que ouvira há pouco. Tinha uma aptidão fora do comum para memorizar cada nota e guardar para reproduzi-las na posteridade sem erros nem vacilos.  

Numa tarde em que vinha da culinária, ouviu alguém chamando-a pelo nome. Ao virar-se, encontrou o rapaz que ficou esperando para vê-la se mudar. Um gato precisou pular por cima do sapato dele para não ser atropelado pelo encontro dos dois. Ofendeu-se com a pergunta de onde estava morando. Passado o primeiro ímpeto, retraiu-se lembrando-se da promessa de não querer voltar a ouvir pedrinhas na janela avisando-a para abri-la. Conversaram um pouco e ela, repentinamente, mudou de ideia convidando-o para a festinha daquela noite.  

Ao chegar em casa, primeiro foi preparar algo para distribuir com as pessoas que vieram testemunhar sua passagem pelos seus vinte e dois anos. Conhecia-os desde o tempo em que se instalara no bairro, por isso fez questão que cada uma sobremesa fosse distribuída de acordo com a personalidade dos convidados. Já vinha experimentando ingredientes com a capacidade de mexer no psicológico das pessoas, porém com gente de fora seria a primeira vez. 

Encontravam-se ouvindo-a estrear uma canção nova que fizera pensando nas sobremesas. Deveria ser tocada no momento exato de cada porção degustada, e quando chegou a vez de serem servidos, a mãe conferiu as etiquetas conforme ela havia decidido. Som e sabor combinando-se para que ela pudesse provar a tese da influência dos alimentos em cada personalidade.   

No outro dia chorou de emoção quando terminou sua apresentação no teatro com todos aplaudindo-a de pé como havia sonhado. A mãe nunca disse que ela tinha aptidões para o macabro e nem que aquele talento musical ela conseguira com as fórmulas mágicas. 

O rapaz que havia sido convidado de última hora para o seu aniversário estava sendo velado, mas não se sabe em qual funerária. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.10.2023 – 22h09min.    



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