segunda-feira, 23 de outubro de 2023

"QUANDO EU MORRER, VOU CONTAR TUDO A DEUS"

 


"QUANDO EU MORRER, VOU CONTAR TUDO A DEUS"


Cuidamos de crianças órfãs, e a cada dia necessitamos de mais tudo. As maiores já estão colocando fraudas e pomadas nas menores, mesmo assim é preciso um adulto com olho vigilante. Desde o início do mês, quando houve um aumento significativo dos ataques, a situação piorou. É quase impossível atender às enfermas quando não se tem tempo nem para cuidar das saudáveis. Parece-nos que há uma orquestra de doenças sendo tocada. Quando uma criança começa a tossir, todos as outras acompanham na mesma frequência dos gemidos e choros intermináveis. Andamos tão sem fôlego que nos sentimos aliviadas quando uma morre. De noite, caímos duras de sono e nem nos damos conta do que acontece nas madrugadas. Pela manhã, passamos em revista para ver quem sobreviveu ou mesmo quem conseguiu escapar de ser molestada pelas outras maiores. 

Fazemos o que é possível sem um registro oficial do que acontece debaixo dos nossos galpões, tendo em vista que quase todas as supervisoras foram convocadas para a linha de frente. 

Agora vejo com alegria ter nascida com uma perna curta que me salvou da convocação. Quase ninguém se arrisca a sair aqui de dentro, e até já estamos cavando túneis para evitar bombas perdidas e nos proteger do frio. 

Olhamos para o semblante dos soldados que trazem a pouca comida semanalmente e ficamos torcendo para que aquele que veio ainda esteja vivo na próxima entrega. Feriado ou folga só quando se é atingida por uma granada ou coisa do gênero. 

Semana passada, ficamos reféns de um grupo de jovens soldados que estupraram as meninas ainda em fase de brincar de bonecas sem poupar a nós cuidadoras. Mataram algumas e foram embora rindo do nosso tormento. 

Não há soldados disponíveis para ficarem de plantão conosco, e só nos resta se esconder ao menor sinal de perigo vindo lá de fora. Há alguns cães que latem constantemente e que se misturam com nossa indisposição em averiguar que se trata de fome ou mesmo de inimigos se aproximando.  

Criança doce já não existe no nosso acampamento. Estão enjoadas, chorosas e tensas. Cada uma de nós permanecemos aprisionadas em um cérebro com tendência retroativa como se todas as imagens produzidas viessem manchadas de sangue. Ninguém consegue pensar em algo sem que rabiscos vermelhos interfiram na imagem numa visão que gira como rascunho de pensamentos. Nossa consciência nos entrega um conteúdo falso a cada momento, e às vezes nos pegamos acreditando que o dia gira ao contrário vindo primeiro a noite, tarde e manhã, nessa sequência. 

Quase tudo está fora da lógica devido ao terror sem trégua. Nossos pesadelos ajudam a nos manter aprisionadas até em paredes de vento. Quase sempre tomamos isso como o fim do mundo de tão dura que está nossa realidade, e o pior é que não temos para onde ir. Talvez em segredo era isso mesmo que queríamos ao consumirmos de forma passiva conteúdos onde a violência era tratada como entretenimento.  

Contentávamo-nos quando uma pessoa, empresa ou país se dava mal, e isso pode ter servido para nos anestesiar tipo já que não é comigo, pouco importa. Enquanto não piora, só nos resta continuar refletindo onde tudo isso vai dar. 

Comove-nos o comportamento das pequenas nas filas, cada uma com seu prato e copo igual a um cão esperando um osso para roer. O chão de barro batido requer uma atenção maior para que nada caia e tenha que ser engolido misturado com areia. Os banhos com água fria e contaminada antecedem esses momentos, e só nos resta torcer para que elas já tenham adquirido anticorpos dos tanques coletivos.  

Algumas mães ajudam, porém se sentem deprimidas por saber que o marido ficou estraçalhado num confronto. Nem todas estão tristes além da normalidade, contudo as que vivem deprimidas lhes são tiradas a chance de praticar o infanticídio. Aprendemos a detectar o olhar fixo de algumas e afastá-las dos filhos com desculpas difíceis de fazê-las entender. Algumas relatam que têm a impressão que a cabeça quer pular para dentro da coluna vertebral fazendo desaparecer a própria noção de estar viva.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.10.2023 – 16h20min.




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