O BOM E O RUIM DO POR ACASO
Quando for comprar os seus, lembre-se de trazer um meio amargo, pediu a esposa que preferiu ficar em casa. Toda segunda-feira, o marido assiste sessões no cinema como uma forma de se manter atualizado e quebrar a regra médica de não comer chocolate.
Naquele finalzinho de tarde, já havia feito a barba e calibrado os pneus. Sentia-se feliz em poder ir solteiro, único dia em que tinha essa liberdade junto à família. Nem almoçou com o propósito de degustar, com mais intensidade, as guloseimas durante o filme.
Às dezessete, quando os ônibus passam lotados, ele encontrava-se ao lado de um deles observando o suor das trabalhadoras que permaneciam de pé segurando nos balaústres horizontais, quem sabe, sonhando com um lugar sentado.
Estacionou perto da loja de jogos eletrônicos fitando uma mãe com balões de um lado e puxando um menino fantasiado de homem-aranha, do outro. Enquanto conferia os objetos acomodados nos bolsos, ficou a imaginar o trabalho que dá percorrer as etapas da educação dos filhos. Aquela mulher, seguindo o marido entretido no celular, deve dar duro para atender à demanda daqueles dois que ela nem percebe que vivem a lhe explorar. É o mundo do trabalho compensando-a com festinhas, vestido preto e saltos altos igualando-a às amigas da mesma classe.
Pelos corredores quase vazios do shopping, caminha se lembrando que usa uma calça azul comprada onde irá passar em frente. Espera que o vendedor não o reconheça com um sorriso convidativo para outras mercadorias.
Buscando um local na carteira para guardar o cartão de estacionamento, esbarrou em uma ruiva com uma bolsa nas costas distraída tanto quanto. Esta jovem deve se orgulhar da tatuagem vermelha marcando-a nos braços nus. Desculpe-me. Sem pro, também me distraí ao celular. Os olhos se encontraram numa fração de segundos na coincidência em se desviarem, por duas vezes, pelo mesmo lado. Depois, um sorriso rosa desfez as segundas intenções. Não era uma ladra.
Na fileira da frente, encontrou a poltrona que correspondia ao centro. Gosta daquele lugar por ser um dos que permite chegar primeiro ao banheiro quando há um final superlotado. Com os pés firmes numa barra de ferro à frente, abre as compras dando início ao ritual que traz lembranças de um passado infantil.
Hoje, havia conseguido o ingresso tocando na tela do totem sem que as moças oferecessem pipocas, refri etc. Mais um motivo de alegria. Por educação, deixava-as assumirem o controle, mas isso o enfurecia. A que veio em busca da percentagem, não gostou quando ouviu o pedido de não ajuda, sem saber ela que as palavras educadamente proferidas haviam sido ensaiadas diante do espelho durante quinze dias.
O porteiro é bem simpático, e muitas vezes nem pede mais para conferir seu ingresso. Pensa em passar sem ingresso, no entanto seria muito vergonhoso ser taxado de caloteiro.
Na porta da entrada ao lado, alguém lhe chama a atenção carregado de pipocas das quais ele escapou. O rapaz parou olhando para o fundo da sala, e com dificuldades pode localizar a ou as pessoas que estava a procurar. Era um cabeludo com cara de abundância que trocou uns gestos com alguém longe da sua atenção, e que subiu, num ritmo de sacrifício, para as poltronas lá de trás.
Nesse momento, começou a projeção. Trainers, pensou ele nos quinze minutos que teria para assistir as preliminares. Observou de esguelha duas moças com os pés na mesma barra onde ele havia colocado os seus. Compartilhavam o lanche na maior intimidade. Hoje em dia é comum, pensou enquanto dava conta de um cadeirante chegando para a fila dos especiais.
A moça cuidadora olhou para elas como um gato saindo de uma caixa de sapatos. Aquela mulher nem desconfiava que também estava sendo olhada de forma censurada pelos muitos que acompanharam seu estranhamento ao chegar.
Ele sentiu que também estava sendo observado por uma suspeita do lado oposto das amigas íntimas. Disfarçadamente, olhou para o teto, para o lado das amigas voltando rapidamente o olhar para onde vinha aquela energia observadora. A poucos metros, uma idosa havia simpatizado com ele. Desviou os olhos botando uma cara de quem não quer dividir o lanche.
Na parte mais alta da sala ficam os bem fanáticos por filme de terror. Aqueles engraçadinhos ou elas que na maior tensão já contam com uma frase pronta para disparar. Muitos assistem mais de uma sessão só para ter seus cinco segundos de fama. Dessa vez, não seria diferente.
Seu quase total isolamento nas primeiras filas o perturbava. Sentia um peso nas costas como se estivessem lhe apontando. Talvez existisse alguém se passando por sua sombra, como fazem para arrancar riso dos demais colegas, contudo por mais de uma vez tentou encontrar o motivo desse peso, sem sucesso.
Resolveu se concentrar no paladar fixando os olhos no momento em que estava sendo mostrado as portas de emergência e o cuidado com o lixo produzido. Sentia-se empanturrado de tanto ver e ouvir aquelas orientações, porém aceitava-as por saber o quanto é importante estar com aquelas informações engramadas.
É natural que os sentados observem quem chega ou sai, e é mais comum ainda que outras cheguem com seus combos maiores numa verdadeira disputa no tamanho do desperdício.
Passava belas imagens feitas para vender o próximo filme quando percebeu que precisava baixar os braços da poltrona, em cuja extremidade se pode esvaziar as mãos. Sem o pacote a lhe roubar a atenção, pode estirar-se forçando a barra com os pés.
A senhora da terceira fila atrás dele fora esquecida por completo, pois agora a atenção estava voltada para as duas meninas de cabelos coloridos que vinham chegando com os narizes argolados, igual a focinho de touros, e que se sentaram entre ele e a enrugada. Seria mais dois pares de olhos a observá-lo. Ele tinha mania de perseguição, e em constante movimento sempre olhava ao redor e para trás, mesmo que isso o irritasse quando alguém fazia o mesmo à sua frente.
O filme começou com uma visão de um cemitério abandonado. Ninguém mais chegava à porta para tirar-lhe a atenção, com exceção de uma que veio sentar-se ao seu lado de onde ele havia repousado as compras. Aceita um chocolate?, fez essa cortezia com muito medo que ela aceitasse. A moça sorriu e... sim, aceito. Pode escolher, abriu o embrulho plastificado sem tirar os olhos da tela. A moça também trazia algo oferecido e aceito sem que ele nem se desse conta que era o mesmo produto rejeitado ao aparecer no totem. Um pouco salgada, a pipoca tirou-lhe o prazer de ficar com o gosto de cacau.
Não obrigado, quando sentiu o saquinho encostar em seu braço pela segunda vez. Ela tirou o casaco e amarrou no pescoço. Enquanto fazia isso, distraidamente, ele pode analisar aqueles braços com poucas sardas e as tatuagens vistas há pouco no esbarrão. Continuava olhando para a tela com o pensamento na ruiva ao lado. Será possível?, perguntava-se sem querer saber de vez. Novamente o braço é tocado, só que dessa vez foi braço com braço. Gelou. Como é macia. Queria ficar imóvel e sem criar expectativa, mas não teve jeito. Aquela pele branca roçando nele...
Após a certeza de ter sido aceita, ela o convidou para as poltronas vazias lá do fundo. Vá primeiro que irei em seguida. A escuridão das catacumbas expostas na tela ajudou bastante quando ele resolveu ir se esgueirando para não chamar a atenção. Acomodaram-se, e quase no final da sessão ela saiu para ir ao banheiro. Quando as luzes se acenderam, esperou que todos saíssem na esperança de encontrá-la. Só quando o pessoal da limpeza chegou, foi que percebeu a falta da sua carteira de cédulas. Dirigiu-se para a praça da alimentação estudando o que diria para a esposa quando, passado algum tempo, recebeu a ligação: amor, uma moça ruiva veio deixar sua carteira com documentos que ela encontrou no cinema. Ela é bem simpática e, por coincidência, mora no andar de cima. Disse que quando você chegasse, podia ligar para ela. O número é...
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 21.10.2023 – 12h40min.
A narrativa é repleta de detalhes que nos fazem refletir sobre como as pessoas podem estar conectadas de maneiras inesperadas e como a vida muitas vezes nos reserva surpresas quando menos esperamos. O conto também destaca como pequenos gestos de gentileza e conexão podem ter um impacto significativo. Parabéns! - Gilberto Cardoso dos Santos
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