terça-feira, 31 de outubro de 2023

A GRAMA DO VIZINHO NEM SEMPRE É A MAIS VERDE

 


A GRAMA DO VIZINHO NEM SEMPRE É A MAIS VERDE


Está sentado com os braços cruzados em cima da mesa e a testa em cima dos braços. Prefere não abrir os olhos para não ter que ver o chão sujo de pontas de cigarro. Sua mulher está de resguardo e ele precisa ir se acostumando com a ideia de ser pai de uma criança cega. Com licença senhor, o bar vai fechar. Precisa voltar para sua realidade porque a do garçom é fazê-lo sair. Tudo bem, já estou indo. Mora um pouco distante de modo que a embriaguez já tem passado quando deita-se para dormir o sono dos inquietos.

Como de costume, permanece sem sono e pela madrugada é registrado a lâmpada acesa no quarto trazendo à tona um lençol fino servindo de cobertor. O cursor do aplicativo pisca querendo conversar. 

Ele não encontra jeito de fugir daquele padrão estabelecido, não se sabe por quem, só sabe que lá se vão cinquenta anos naquela rotina enfadonha de viver da herança deixada pelos avós. Poderia estar na boate, mas a energia para tal já foi desperdiçada na passagem do tempo. 

As cortinas das janelas que lhe acompanharam durante essa jornada já dão sinais de pequenas descontinuidades e leve transformação do colorido. Conta apenas com a companhia das palavras catadas na peneira do pensamento e usadas como a única tábua de salvação. Estaciona sua angústia às margens da página e fica vibrando por ela existir. É uma comemoração silenciosa que se manifesta do jeito que deve ser, sem alardes. 

Escuta sua alma se comparando com as que estão atormentadas pela miséria da guerra e que não encontram forças para fugir. Nem sabe explicar o porquê de ficar curioso em saber quem matou quem ou se houve algum período em que os conflitos estiveram ausentes da história da humanidade. Precisa atualizar os dados para se sentir privilegiado por não estar na mira do arsenal bélico, e isso o deixa vulnerável à mesquinhez. Ele não precisa de fuzil para morrer de tristeza. A esposa, no outro quarto, já deu de mamar e também dorme satisfeita. Só ele é que não se enquadra na normalidade. Como ser feliz com tanta miséria acompanhando-o? 

Volta para sua realidade para evitar se entristecer ainda mais se colocando no lugar dos meninos e meninas que não pediram para nascer, porém vivem na obrigação de vivenciar o que é desconfortável até para adultos. A filha dele também não pediu e nem sabe que está transformando para pior a relação pai/mãe. Não tem jeito. Tenta fugir desse pensamento e, novamente, esbarra nas crianças que foram gerados em nome do amor e adotados pelo ódio na sua mais profunda manifestação.  

O sol vai chegando avisando que deixe os mortos enterrarem seus mortos, só que a cada morte injustamente anunciada, a humanidade dá a prova real do fracasso como espécie, e isso o preocupa. Nessa hora ele enxerga que o seu problema é bem menor do que comparado aos dos outros. Não se conforma que o ser humano precise sofrer para viver, mas o que se resolve com a preocupação? Essa sua guerra interior se iguala às demais? 

A criança chora, a mãe não acorda, ele tem que pegá-la no colo. Ela para de chorar, porém ele derrama lágrimas ao vê-la procurando, com os olhos sem luz, quem está a lhe ninar.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 31.10.2023 – 07h02min.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”