terça-feira, 5 de setembro de 2023

NEM SEMPRE É O QUE APARENTA SER

 


NEM SEMPRE É O QUE APARENTA SER


Saiu de casa com destino ao bar. Hoje, preciso me embriagar. Soube que a ex-mulher estava lhe procurando para descarregar a arma. Um passarinho bicava um resto de pão. Como seria bom que não tivesse tantos problemas quanto aquela ave. Ficou observando as flores do canteiro. Ainda era claro, porém o sol já declinava num último adeus. 

Um ônibus passou lotado em direção ao bairro dos trabalhadores. Sentiu saudades do tempo em que chacoalhava buscando estabilidade financeira. Viu duas meninas gêmeas na janela. Ao virar rapidamente o rosto, já haviam desaparecido. Ultimamente estava tendo alucinações desse tipo. O mais intrigante era que elas surgiam com os rostos ensanguentados, sorridentes e com os mesmos penteados. Não queria mais pensar naquilo, por isso o bar.

Atravessou a rua. Um mendigo direcionou sua mão suja. Assustou-se com a possibilidade de ser um deles num futuro próximo. Sempre tinha uma frase que murmurava toda vez que se deparava com a representação da miséria humana: “a gente não sabe onde chega.” Aportou do outro lado da rua com um pulo ajudado pelo veículo buzinando às suas costas. Bateu três vezes no poste. Praticava sempre ações com raiz na superstição. Sua avó lhe incutiu forças que regem às escondidas, e ele acreditava piamente nisso. 

Seu estômago deu sinais de que precisava voltar a digerir. O dia havia sido corrido, mesmo assim não conseguia se libertar da sensação a lhe corroer a alma. A ex-mulher nunca quis entender que ele não havia como prever a convulsão do filho na piscina. 

Parou numa banca de revistas. Vai levar o quê hoje, meu amigo? Estou com muita coisa para ler. Acho que só parei porque sou viciado nessa banca. Despediram-se com ele lembrando-se quando passava com a mochila nas costas cheia de livros do sebo. Era seu sonho montar uma biblioteca, até ela fazer fogo deles.

Uma vitamina de pinha. Aguardou sentado num banquinho próximo ao balcão. Aproveitava aqueles momentos de espera para fazer uma leitura dos tipos frequentadores daquela lanchonete. Mais um homem sujo pediu-lhe. Um outro, pago para espantá-los, surgiu. Vá na moral. Não perturbe. 

Uma torrada, só com queijo. Mastigava seu lanche ouvindo reclamações de um cliente que teve as pernas molhadas pelo motorista mal-intencionado. Vai uma raspadinha? Não, obrigado. 

Gostava de frequentar aqueles lugares para fazer comparações com os personagens que viviam em sua cabeça. Estava boa a vitamina? Ótima. Sempre escolhia a fruta-do-conde para recordar-se de quando visitava os avós. Fez o pagamento escondido. Naquela cidade movimentada, até puxar a carteira em público era perigoso, e mais ali no início de noite. 

Nas calçadas, já começavam a chegar as damas perfumadas. E aí, vai um programinha? Eram meninas recém-saídas da puberdade. Muitas se pareciam com sua filha distante por motivos inexplicáveis. Uma moça bonita passou sem cara de programa. Estava concentrada em se equilibrar nos saltos inapropriados para uma estudante. Era recém-chegada sem ter tido tempo para assimilar a cultura local, principalmente do vestuário e da forma de olhar para os lados, observou ele. Boa noite! Ela não respondeu. Aquela seria mais uma em sua vida, se tivesse havido correspondência. Segui-la, nem pensar. 

Ela voltou. O senhor poderia me informar onde fica a faculdade de odonto? É logo ali, depois daquela praça. Sou professor lá, e, por coincidência, já estou atrasado para a aula. Que bom, quem sabe, serei sua aluna. Pode ser mais do que isso. Entreolharam-se e ela percebeu a cara de sem-vergonha dele. Aqui é muito perigoso a senhorita estar sozinha, principalmente pela falta de iluminação. Não tem problema, eu ando armada. Puxou uma pequena pistola e detonou o coração do falso professor. 

Do outro lado da rua, a ex-mulher testemunhava tudo enquanto a assassina profissional subia na motocicleta do parceiro. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 05.09.2023 – 07h03min.




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