TODO PASSEIO DÁ O QUE FALAR

 

TODO PASSEIO DÁ O QUE FALAR 

Sentado aqui no banco espero chegar o momento de “A Porta Vermelha.” Filme de terror que escolho para ver se consigo sentir medo. Falta meia hora para o início, e ao meu lado um jovem com patins recolhe o lixo em um saco preto. Uma bolsa amarrada na perna com desinfetante, escova, pano... tudo organizado para não enfeiar o shopping.  

Duas mulheres, com calças pretas e camisas brancas, exibindo uma logomarca do lado do coração, caminham despreocupadas. Ficam agradecidas por não precisarem usar saco preto como ferramenta de trabalho.   

A dinâmica do dia a dia faz uma idosa balançar a cabeça examinando uma blusa, não sei se pelo preço ou por outro motivo. Acho que vou gritar perguntando-lhe: ei!, a senhora não comprou por quê?, mas possa ser que o neto se intrometa. Tem gente que passa o dia zanzando fingindo comprar com o objetivo de se sentir integrada à sociedade de consumo. Uma conhecida minha sai logo pela manhã e só volta à noitinha com a mãe aposentada a tiracolo. Ficam passeando, comendo, expelindo e achando bom. 

Ao entrar em uma chocolataria, deparo-me com uma vendedora da cara de cavalo. Nunca vi tão bela ao contrário, e ainda usa bridia nos dentes contribuindo para que eu não consiga dialogar bem com aquela assimetria. Se você fizer o cadastro terá um desconto de trinta por cento. Fiz e logo recebi uma mensagem avisando sobre as promoções antes mesmo de sair da loja.

Tornei-me, repentinamente, um homem feliz por estar prestes a consumir duas coisas que gosto: uma estava na sacola e a outra chegando perto. A sala três não está disponível. Faltam apenas quinze minutos e ainda não posso entrar? Ah, sim, pode, confundi-me com a sala seis. É à sua esquerda. Fui para a direita, pois não existe ritual completo se não for visitar o secador de mãos do banheiro. 

Acostumei-me a me sentar quase dentro da tela, pelo menos ninguém fica disputando o braço da poltrona comigo. Na frente, onde ninguém gosta, lá estou eu como se estivesse dentro do set de filmagem sentindo-me diretor. Pouca gente assistindo e bem no meio do filme ainda era um total mamão com açúcar! Mesmo não sendo nota dez, o objetivo de me entreter foi alcançado com aqueles sons parecido com trovão dentro de uma lata de querosene fazendo-me ficar com os cabelos em pé. Acho que se eles fizessem só aquele barulho eu já me sentiria satisfeito. 

Desço as escadas quando as lojas já estão sendo fechadas. Eu não sabia, mas muitos dos funcionários que vão embora levam um saco branco do lixo da loja acumulado durante o dia. Fiquei também observando que há um movimento dos carecas em canalizarem sua vocação para serem vigilantes. Dificilmente vejo um que não tenha a cabeça raspada, e acredito que nem precisavam de farda, apenas um polimento e um crachá já estariam bem identificados.

Na saída, um cara quis me ultrapassar. Fomos até o viaduto disputando corrida em plena avenida. Acho que ele me deixou passar porque viu meu carro todo amassado dos rachas que faço com outros atrevidos. 

Chego em casa trazendo uma calça da cor que estava faltando no meu guarda-roupa. Vamos logo tirar as medidas para os ajustes, disse minha esposa. 

Acordei de madrugada com remorso por ter dito que ela não servia mais pra nada, pois nem conseguiu verificar o comprimento da peça por ter magoado a coluna ao se abaixar com a fita métrica. Perdi o sono, e vou ter que lhe pedir perdão. É nisso que dá falar e não se importar com as consequências de um choro.

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.07.2023 – 03h27min.