sexta-feira, 28 de julho de 2023

REVIRAVOLTAS

 


REVIRAVOLTAS


Encontra-se com a corda no pescoço e muita gente assistindo sua agonia. Ali estão alguns dos meus maiores inimigos, pensa enquanto faz uma varredura com o olhar ofuscado pelo sol do meio-dia. Não sabe quem ficou com seus sapatos, meias e as roupas que vestia. Este roupão deve ter sido usado por muitos, murmura acrescentando que achava bonito ver alguém ficar pendurado até parar de se debater. Os pés estão cheios de lama da chuva que caíra na madrugada na cela com o teto travejado de vara. Vou me livrar da vontade constante de matar pessoas, essa era sua maneira de relevar a dor no pescoço quebrado que estava prestes a sentir.

O sujeito com capuz preto na cabeça é seu conhecido e também de todos que vieram assistir à execução. Todo mundo sabe que ele tem o cabelo loiro encaracolado, fato que não altera em nada sua antipatia adquirida durante anos de trabalho. Vou puxar com prazer a alavanca para esse ladrão de galinha. 

O carrasco, que acabara de chamar o condenado de ladrão de galinha, leva uma vida normal em uma pequena gleba de terras pertinho alguns trotes a cavalo. É o único que não vai se confessar toda semana deixando o sacerdote puto de raiva pela sua desobediência. Seu trabalho o transformou em uma pessoa que poucos querem amizade, com exceção do dono da funerária que naquele tempo nem se chamava assim. Graças a essas demandas é que posso comprar o necessário para o sustento da minha família, diz para si já acostumado com o suor quase a lhe cobrir os olhos e o fedor daquele tecido preto que nunca é lavado. O prisioneiro foi o responsável pela diminuição das galinhas do seu terreiro, eis aí o motivo do ódio misturado com o dever.    

O homem com a incumbência de ler a sentença ainda não chegou devido uma veia inchada conhecida anos depois como hemorroidas. Apenas alguns guardas com lanças se posicionaram ao lado da plataforma com o objetivo de furar quem se atrever a bagunçar o enforcamento. O monumento permanece erguido como orgulho do lugar. Quem não vier é tido como suspeito em acobertar o criminoso, por isso a justificativa da multidão. 

Uma moça, sorrateiramente, aproveita a distração avançando nos degraus e beija o condenado na boca. O povo grita: oh! que nojeira. Vamos vomitar! Matem-na, gritam os mais exaltados depois que ela está amarrada num canto. Carrego um filho dele, diz ela querendo justificar que pode beijá-lo o quanto quiser. Filho de ladrão, ladrãozinho é. Vamos acabar com essa raça antes de colocar mais gente ruim no mundo. Escuta-se aplausos e assobios dos mais acanalhados. Um outro aproveita o aglomerado para furtar, entretanto é agarrado por populares que o lincham e até o empalaram junto com um tomate que acabara de furtar. Minha mãe não pode saber, balbuciou momentos antes de vomitar sangue. Sua mãe já morreu, desgraça, reprimiram os que o conheciam de outros enforcamentos. 

Até os loucos param para assistir a única festa em que podem participar. O clima é bem agradável naquele local alto e ao ar livre rodeada de montanhas, com exceção para quem está prestes a morrer. Os fracos do juízo gostam porque recebem uns trocados para ficarem dançando enquanto não começa o ritual. 

Uma chuva chega confirmando a capacidade de mudança repentina do clima com o vento fazendo os muitos segurarem seus chapéus e outros pularem juntamente com os loucos numa algazarra só.   

A chuva cessa para que o sacerdote possa sair da liteira e se ajoelhar, imitado também pelas crianças que ainda não tinham programas de televisão para lhes implantar o medo. O gesto indicador da alienação não é acompanhado pelo condenado por saber que não vale nada aquela encenação.  

Chega o homem da sentença e lê o que todos já sabem. Acabe logo com isso e vamos aos finalmentes, grita um impaciente querendo voltar para sua barraca de verduras ali perto. Algumas considerações finais?, pergunta quem acabara de ler os motivos daquela forca está montada. Quer falar alguma coisa? Hem? Vá te catar!, grita a mulher que estava amarrada, dessa vez contida pelas auxiliares que vieram lhe buscar para o castelo. É a filha do Rei, muitos gritaram reconhecendo-a depois que ela tirou a lama da cara. A filha do Rei dormiu com o condenado e agora ele terá que ser libertado, essa foi a ordem do mensageiro que chegou montado num cavalo sem rabo. 

Nesse momento, sem que ninguém esperasse, o Rei chegou para socorrer a filha. Pois não é que aquele menino chato estava lá gritando: o Rei está só de ceroulas, o Rei... O fato é que quando soube o que estava acontecendo com sua querida filha, saiu correndo do banho esquecendo-se da roupa que lhe fez autoridade. 

Mesmo depois de desamarrado, o condenado teve direito a expressar o último desejo sob pena de quebrar o protocolo. Ele não teve dúvidas: o carrasco foi enforcado.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 28.07.2023  -  05h40min.



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