HÁ VAGAS PARA PERSONAGENS ANÔNIMOS
Já faz dias que estamos esperando que você publique algo digno de leitura, e se não tentar achar essa tal de inspiração que tanto procura, iremos abandoná-lo. Calma gente, é que estou fazendo uns experimentos e isso leva tempo para chegar ao ponto ideal.
Naquela manhã fria, suas esperanças estavam indo embora junto com a demora em apresentar um texto que surpreendesse aos assíduos leitores e a si mesmo, já que várias técnicas haviam sido usadas, e nada. Enquanto pensava, as pessoas de casa, vendo a porta aberta, entravam para contar as novidades do dia a dia achando que ele estava desocupado. Estou tentando escrever. Deixe de conversa, o que estamos vendo é você com uma cara de cachorro que caiu da mudança, respondiam e continuavam ocupando as cadeiras espalhadas pelo escritório.
Nós não queremos saber disso, portanto apresse-se porque está sendo pago, muito bem por sinal, para nos entreter. Vocês têm razão em cobrar resultado, afinal é muito ruim abrir a página e lá está o mesmo texto boiando, por mais surpreendente que foi, já era.
Essa cobrança dos consumidores estava afligindo-o a ponto de achar que iriam entrar na justiça pedindo indenização pelo ócio criativo permanecer totalmente no ócio. Isso mesmo, iremos falar com o juiz que também sofre com essa falta, para ele determinar a abertura do baú com alguns escritos que você mantém sobre sigilo. Bem, boatos são boatos e nem eu mesmo sabia da existência desse baú.
As pessoas estavam totalmente aflitas por ter que se contentar em reler. Ele tentava evitar o drama de escritores que se bloquearam e nunca mais tinham encontrado a frase especial que dá início a um texto. Sua aflição era tão profunda que olhou para uns pingos d'água pendurados num corrimão do lado de fora de uma clínica e os apresentou como assunto do dia. Isso não queremos! Pingos em todo canto tem, e mesmo que sejam vistos sobre o olhar poético, são sem sentimentos, incapazes de uma ação mais enérgica sabendo apenas cair e deslizar pelos desníveis do solo.
Tentou apelar para o cheiro de uma recepcionista que estava no balcão de atendimento da clínica. Que cheiro agradável, e ela é linda, bem feita... Ah, não! Lá vem você querendo se passar por um garanhão como forma de prender a atenção. Será que posso falar que a faxineira usa calças coladas ao corpo que faz qualquer homem viajar naquelas curvas? Ele já vinha observando aquela sonsa há bastante tempo, e percebia que ela olhava para o chão com um sorriso no canto da boca toda vez que o fitava, e isso era sinal de que estava tentando atrai-lo, pensava ele. Claro que também não pode porque já estamos fartos de personagens com a libido acima da normalidade. Mude para uma personagem que não atrai, que seja um exemplar típico do desprezo social, só assim poderemos dizer que faz realmente uma literatura de boa qualidade.
Apareceram várias candidatas gritando fale de mim que sou uma mulher fria, feia e seca, se é que querem algo totalmente fora do padrão de beleza em voga. Tudo bem, que entre a primeira candidata. Já havia uma fila enorme esperando uma chance para brilhar. Qual é seu nome?, perguntou o autor a uma órfã de pai e mãe, criada por uma tia que a maltratava e que possuía um corpo franzino por comer cachorro-quente. Além disso, ela era feia, virgem, tímida, solitária, ignorante, alienada e de poucas palavras, uma pessoa perfeita para o papel, só que ao dizer o nome Macabéa foi descartada por ter morrido no romance A hora da estrela de Clarisse Lispector. Ela queria ser novamente uma personagem, pois desde sua última aparição, ficou sem emprego e passou a comer ainda pior. Não estou aqui para fazer caridade, respondeu o autor gritando para que o próximo personagem entrasse para a entrevista. Um corcunda? Sim, o de Notre Dame. Já chega por hoje, disse o autor, reconhecendo que não tinha talento para relançá-los.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 07.07.2023 - 13h49min.
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