terça-feira, 4 de julho de 2023

CONFUSÃO MICROSCÓPICA

 


CONFUSÃO MICROSCÓPICA


Vamos ver quem chega primeiro?, expressou-se um raquítico espermatozoide querendo ultrapassar o preguiçoso que ia dizendo: se tiver de ser será. Você acha que vale a pena se tornar humano?,  perguntou uma XX com sua roupa de atletismo rosa e uma garrafinha d’água na mão. É nosso destino viver nessa correria, respondeu um XY doido pelo esporte do empurrão orgástico em vigor desde Adão e Eva. Se valia a pena ou não, eles nem deveriam discutir. É melhor continuar nadando sem fazer perguntas inconvenientes, comentou um outro com tendência ao conformismo. 

Naquela pista escorregadia, milhões deles permaneciam revoltados por terem sido despejados do saco escrotal sem direito a recorrer. Eu já tinha me acostumado a passear pendurado, por isso não gostei quando a movimentação aumentou a ponto de nos jogar nesse aguaceiro.

Muitos permaneciam com vergonha de participar daquilo onde a regra era ficar balançado o rabo. Acho que é por isso que já nascemos com aptidão para dançar, comentou um outro que durante o percurso ia treinando o passo do cisne. 

Enquanto eles se digladiavam nas entranhas reprodutoras, os dois atores principais permaneciam se beijando. Pessoal, vamos adiantar porque daqui a pouco vem outra enxurrada de concorrentes, avisava o treinador que também lutava por um lugar ao sol. 

Dizem que lá fora existe vento sem cheiro, é verdade? A curiosidade em saber o que existia além das trompas de falópio, era o que os impulsionava. É verdade sim, e também é verdade que existe uma tal de claridade. Todas essas informações eram repassadas pelos agentes auriculares captadores de fofocas. É estranho existir um lugar claro diferente dessa escuridão, disse o explicador satisfeito por ter encontrado alguém interessado em saber o que ele sabia. O diálogo continuava enquanto permaneciam nadando na tuba uterina como se nada estivesse acontecendo. Como você sabe que lá é claro de dia?, perguntou o outro não se dando conta que estava atrapalhando o fluxo. Eu fico sabendo porque não largo o meu rádio sintonizado no programa do casal martelo e bigorna, respondeu sapecando uma pergunta se ele sabia o que era a luz. Claro que ele jamais saberia, porém isso não o fez ficar por baixo. Estou querendo saber, conta logo antes que acabe nossa corrida de quinze centímetros. Luz é o que proporciona se ver bem de longe. Uma luneta? Não, mas você logo saberá se ganhar a corrida. Nesse momento, o perguntador aumentou a vibração e foi avançando numa velocidade tão assustadora que fez o sabe-tudo se arrepender de ter estimulado o outro a acionar o flagelo na última rotação. Lasquei-me, agora não tenho mais chances com esse querendo saber como é a vida ao ar livre. 

Cada um corria de um jeito, inclusive tinha até candidato a humano carregando uma bandeira colorida gritando por igualdade de gênero. Será que ele tem chance de chegar em primeiro?, perguntou aquele que ajeitava a peixeira com o punho cerrado e com cara de poucos amigos. 

Era um empurra-empurra tão grande que os fracos optaram em deixar o caminho livre para os mais taludos. Nem sei que ganância é essa de querer ser gente. Os pessimistas iam à frente querendo justificar que corriam atrás do céu localizado no útero por nome de placenta.

Não gostei nada de passar pelo ducto deferente, e você? Eu estava no final do epidídimo tomando um saboroso cappuccino quando fui arrebatado de lá... E eu permanecia falando com as glândulas seminais para ver se elas liberavam um pouco mais de energia para que eu pudesse fecundar o óvulo, meu sonho acalentado desde que nasci. Elas lhe deram? Só um pouquinho a mais, entretanto acho que vou conseguir com o que tenho.

Lá, enquanto esperavam um outro grande momento, muitos permaneciam admirando o saco ser coçado. Veja como ele puxa o couro, comentavam e achavam graça. Aquele é o primeiro sinal de que seremos despejados, conhecimento aprendido através dos vasos sanguíneos que, mesmo querendo disfarçar, carregavam a testosterona a tiracolo. Onde é produzida esse tal coisa que você falou agora?, perguntou uma sem-noção. É lá na fábrica dos dois agentes secretos conhecidos por testículos, e que, na verdade, é quem manda em tudo. 

Os testículos se sentiram prestigiados, no entanto não se manifestaram porque também estavam em missão secreta tentando acordar o chefe pênis para que pudesse expulsar mais daqueles flagelados. 

Eu queria tanto morar aqui pelo resto da minha vida. Ao saber que alguém tentava permanecer estacionado no ducto ejaculatório, o pênis ficou logo de prontidão sonhando em expulsar os retardatários e aproveitadores do calor e proteção existente naquela área. Apesar de não ter olho, posso sentir daqui o óvulo querendo que eu atire espermas nele, disse o pênis ficando no ponto de mandar bala novamente. Naquele momento, ele estava fazendo agachamento pressionado por uma vulva sarada. Um dois, um dois, orientava ela mandando os braços, pernas e boca ajudarem na expulsão de outra leva de desocupados. Está suando muito, disse a mente querendo dar uma pausa. É para suar mesmo! Não estou aqui para brincar, disse a vulva jogando mais líquido lubrificante do que se joga óleo na frigideira para fazer batatas fritas.    

Ao chegar no óvulo, já cansados, encontraram muitos colegas ao redor dele querendo furar o bloqueio. Estes guardas com cacetetes não irão nos deixar passar, e agora? Havia uma multidão de agentes de segurança para fazer a triagem, sendo recomendado que evitassem deixar passar os menos capacitados. Será que eles aceitam suborno?, perguntou o da bandeira colorida. O que você tem para oferecer?, quis saber o guarda animado. O rabo. Mas isso não é suborno porque, quer queira ou não, ele logo será descartado, o que deixou os outros  mais triste ainda foi saber que, para entrar, teriam que não fazer muita questão em manter o rabo intacto. É, acho que vou desistir de ser uma pessoa, murmurou um espermatozoide brutamontes que amolava os dentes mastigando pedras. Muitos o empurraram para o final da fila sendo apoiado pelos mais tradicionais que também deram um passo atrás. Eu vou bem deixar de ir lá fora só por causa de uma besteira dessa, disse o prafentex que conseguiu passar pela guarnição. Logo que entrou, os portões foram fechados e os demais puxados pelo sêmen escorrendo de volta por onde tinham entrado. 

Mas rapaz... tanto esforço pra nada, comentavam os que estavam sendo descartados. Pois é, eu bem que não queria sair dali, disse aquele que pretendia ficar morando. 

Prestem atenção os que não conseguiram entrar! Continuem calmos porque terão uma morte digna, anunciava os alto-falantes instalados pelos corredores. Pelo menos morro com meu rabo no lugar, pronunciou-se o radical da peixeira.

Saiam do meio, gritaram os espermatozoides do segundo orgasmo. Os antigos se protegeram na parede da vagina tentando avisar aqueles inocentes que parassem, pois o portão já havia sido fechado. Eles passaram sorrindo com o flagelo vibrando a todo vapor tanto quanto a turma anterior. Bando de bestas, comentou um dos pessimistas que estava puto por não ter conseguido. Antes de continuarem as reclamações, os que haviam passado há pouco estavam voltando com mais de mil. Corra, cambada, porque quem vem aí é o óvulo e seus capangas, eritrócitos, leucócitos e plaquetas, que foram expulsos pela pílula.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.04.2023 – 17h14min.



2 comentários:

  1. Narrativa divertida e criativa que utiliza linguagem metafórica para descrever a corrida dos espermatozoides em busca do óvulo. Linguagem coloquial e descontraída para descrever a cena, o que torna a leitura agradável e engraçada. - Gilberto Cardoso

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