domingo, 9 de julho de 2023

FORA DO CORPO

 


FORA DO CORPO


Naquela noite, permaneceu acordado até que as doze sonorosas badaladas, finalmente, pudessem ser ouvidas. Ao escutá-las, foi logo se arrumando para ir passear no escuro. Levantou-se, sorrateiramente, colocou o pé esquerdo no sapato direito, mudou também o verso da camisa, empurrou a porta saindo de costas. 

Conseguiu chegar à escuridão combinada puxando um arzinho madrugador com cheiro de glicínia. Como sempre, dirigiu-se às catacumbas onde ela havia sido enterrada sabendo que a encontraria ao pé da cova. Conversava com a falecida mãe já há alguns meses trocando experiências, tendo como fio condutor o passado de ambos naquela casa que havia sido construída por bisavós. 

Tinha predileção em assistir familiares representando antigos espetáculos, razão maior de estar ali. Deleitava-se em saber que só ele conseguia vê-los no meio das lápides, uma vez por semana, encenando amores separados pela morte. Naquela noite, havia saído de casa com um blusão preto de frio, quase arrastando no chão, e uma cartola dando ar de senhor das trevas, como lhe foi pedido. 

Ninguém ousava interferir. Enquanto caminhava naquela escuridão sem fim, animou-se ao avistar um vulto que se transformou em uma mulher de branco com um livro na mão. Os olhos eram de uma pessoa que estava sem dormir há muito vermelhos, o que o fez perceber que estava em frente a um espírito sentinela advertindo-o, sem aborrecê-lo, de que precisava adentrar a um mundo que tivesse graça e que justificasse seu nascimento. O que terei que fazer? Apenas leia um pouco do que trago, mostrando-lhe e lhe pedindo para que se concentrasse naquelas linhas de encantamento com séculos de significados reais.  

Tinha tempo para adentrar naquela outra dimensão sem perder o entusiasmo que o guiava através de janelas abertas. Havia vento balançando-se ao seu redor de forma que o empurrava sem lhe tocar. A leitura continuou como se fosse uma estrada abrindo-se em imagens cada vez que eram decodificadas. 

A orientação é que deveria caminhar mais um pouco sem perder a consciência daquele luxo de andar sobre as águas. A leveza com a qual era transportado trazia-lhe a sensação de segurança nunca experimentado. Pouco a pouco, foi surgindo um semblante de mármore com mãos agarradas umas às outras que o fez centro do círculo. Encolhiam e se afastavam girando em sentidos diferentes a cada piscar de olhos. O objetivo era retirar todos os pensamentos sugadores de ânimo que ele acumulara desde a vida intrauterina. 

Feita essa limpeza, viu-se às três horas da madrugada subindo os degraus de casa com os joelhos um pouco doloridos, as pernas cansadas percebendo que não existe histórias com um final feliz, até porque não existe final. Cada palavra reprimia uma outra, e foi dessa vez que se sentiu confuso pensando que ali já se iniciava construções dos novos medos que ele teria que conviver.  

Ficou em pé de braços cruzados com as costas na parede olhando para o corredor que dava acesso à sala. Percebendo que sua vida ia sendo moldada a cada movimento, preferiu sentar-se à mesa sem abandonar as recordações do que havia há pouco vivenciado. Passou a vista pela casa sombria esbarrando na estátua de Davi. Notou também a toalha desbotada em cima da mesa se desmanchando através de buracos desalinhados. No silêncio, mais uma vez, sonolento, ouviu a pancada do coração, e assim ficou até o amanhecer vendo, sem ser visto, as pessoas de casa começando a dar um outro tipo de significado ao que ele havia conhecido há pouco. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 09.07.2023 – 08h16min.






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