quinta-feira, 15 de junho de 2023

QUASE QUE DAVA CERTO

 


QUASE QUE DAVA CERTO

  

Lá ia o velhinho pela estrada, coitado, sem saber que havia ganhado milhões na sorte grande. Estava confiante que algo de bom estava para acontecer, como de fato havia acontecido longe do seu conhecimento. A cabeça branca com poucos cabelos aquecidos pelo sol da manhã, transportava um chapéu de palha furado pela ação do tempo. As sandálias pisavam uma estrada de terra batida e seus olhos viam a poeira levantando sem poder e nem querer interferir na dinâmica da natureza. Meteu a mão no bolso e retirou o embrulho de rapadura. 

De longe, o vento trazia sons de uma sanfona sendo tocada pelo neto. A sandália de couro cru teve a correia partida naquele exato momento da batida na pedra enterrada na estrada cheia de pedregulhos. 

Um bem-te-vi observava a cena sem cantar. Quem passasse por ali nem desconfiava que havia um filhote desse pássaro esperando os pais trazerem a primeira refeição do dia. As folhas das árvores, quando em quando, mostravam-se umas às outras numa troca de carícias quase imperceptível. O velho já havia se adaptado a sentir o desconforto de pisar nas pedras pontiagudas colocando a sandália quebrada junto à carga de lenha que o jumento tangido levava. Os cambitos faziam uns ruídos ritmados de acordo com a velocidade da caminhada. 

Haviam deixado o ninho do passarinho para trás, porém nem o velho nem o jumento tinham consciência disso. No mundo cheio de seres agigantados, um filhote de bem-te-vi jamais iria imaginar que tivesse sua presença notada por alguém. O bem-te-vi pai bicou um pedaço de papel esvoaçante e o trouxe para arrumar o ninho.

O jumento já estava de saco cheio de tanto obedecer. Sua sina só não o fez mais revoltado com a situação de escravidão que levava porque sua inteligência não permitia que notasse essa realidade. Se os dois tivessem consciência, o bem-te-vi censuraria o jumento por aceitar tudo passivamente. 

A dinâmica da vida ia sendo encaixada de acordo também com a realidade dos dois cães que acompanhavam o cortejo. Eles iam sempre na frente farejando como se estivessem limpando a estrada. Era um casal de animais criados sem muita abundância de carne, motivo maior de estarem sempre à procura de um preá ou lagartixa para suprir suas necessidades básicas. O bem-te-vi respirou aliviado por não ter sido notado, porém o autor mudou a direção do vento para que o cheiro do pássaro fosse parar nas narinas dos dois famintos. Voltaram para tentar abocanhá-lo, entretanto a natureza foi mais generosa do que a maldade do escritor deixando o pássaro longe do alcance das feras.

O velho nem percebeu essa manobra, pois estava ocupado em pensar quantas vezes mais teria que ir buscar lenha na serra. Seu trabalho desde criança tinha sido aquele, e só lhe restava prosseguir conivente com seu destino tanto quanto os outros animais. 

O que lhe entretinha era o papagaio que ele levava no ombro. Durante a caminhada o bicho assobiava e mandava o jumento andar. Quando os cães latiam era ele que ralhava para se calarem. Uma porteira tinha sido o motivo de parar aquela caravana dando tempo para a mulher abandonada pelo marido vir ao terreiro conversar. Se quiser me assumir eu vou hoje mesmo morar com o senhor, disse a mulher. O velho desconversou e continuou indo sabendo que ela gostava de roubar. Ladra vindo da capital, nem o marido aguentou. Ela ficou olhando para o papagaio já pensando em furtá-lo. Aquele bicho seria bem vendido na feira, disse para a filha que também veio olhar para a carga de lenha. 

Se quiser ir com eles vá, disse a mãe incentivando a filha que aceitou a ordem e foi correndo juntar-se ao grupo. Com o tempo decorrido de terem chegado à casa do velho, a sanfona parou de tocar. O neto e aquela filha trancaram-se no quarto e o rapaz naquele dia não mais ensaiou. Enquanto isso, o papagaio organizava os cães para puxar toda a lenha de cima do animal até ser totalmente descarregado. O velho estava ocupado tratando da sua erisipela e fumava no cachimbo que tinha sido da sua avó. 

A esposa já havia morrido de fome na última seca e ele estava quase indo. Pedira ao neto para consertar as goteiras que pingaram na última chuva, mas nada de resolver. A panela de feijão estava no fogo e agora quase não ia sobrar o caldo para os cães, tendo em vista que aquela assanhada viera novamente tentar embuchar do neto. 

O velho foi ligar o rádio para evitar escutar os gemidos no quarto, só que as pilhas não mais funcionaram e nem ele se lembrou de substituí-las. Na cidade as pessoas sabiam que o ganhador da loteria tinha sido alguém da redondeza, porém o bilhete havia se perdido quando o velho puxou o embrulho de rapadura e logo encontrado pelo pássaro pai que estava usando-o para consertar o ninho


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 14.06.2023 – 08h42min.



2 comentários:

  1. Bem construída, a narrativa destaca a falta de consciência do velhinho em relação à sua sorte na loteria, contrastando com o conhecimento que as pessoas da cidade têm sobre o acontecimento. Além disso, a presença da natureza e dos animais na história traz uma sensação de harmonia e interação entre o homem e seu entorno. Parabéns! - Gilberto Cardoso dos Santos

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”