sábado, 17 de junho de 2023

NINGUÉM CONTA

 


NINGUÉM CONTA

Levanta-se da cama com fortes dores na coluna e aproveita para anotar que está assim desde que estava sentando numa cadeira baixa lendo o conto “Os mortos” de James Joyce. A dor apareceu desde o momento em que se admirou com a frase "Olhou para a rua com a finalidade de dar a suas emoções uma chance de se acalmarem um pouco." Que frase bem construída, e foi com essa empolgação que veio a fisgada na coluna. 

Toda vida que se empolga esquece a postura e dá no que dá. Três ou quatro dias para voltar ao normal, mas jamais esquecerá que foi por motivo mais do que justo que ficou torto para a frente. 

Ontem estava bem pior logo depois que pegou peso de forma errada. Vai até a sala e de lá dá uma olhada na carreata que passa sem antes dizer que vão fazer barulho na casa da mãe deles. Ninguém escutou, ainda bem, mas esbravejando conseguiu dar vazão à raiva oriunda da consciência de ser constituído de dores. É dor de cabeça, nas articulações e agora chegou na coluna. Dizem que conversa de um idoso quando encontra outro gira em torno de onde dói mais. Conversa de jovens é ficou com quem? 

Vai até a geladeira. Na parte de baixo tem algo que lhe interessa e logo pega uma cadeira com rodinhas para não ter que se abaixar. Se envergue, diz a mulher tirando onda e aconselhando a tomar um analgésico sabendo que ele prefere sentir dor do que... 

Abandona a geladeira e vai até o espelho na parede para ver o tanto que está emborcado. Parece mais com um caracol em noite de natal. Como assim? Um simples caracol mesmo, essa questão de ser noite de natal ele arranjou para encompridar a conversa. 

Nesse estágio de desconforto tudo vale para se expressar, inclusive imaginando que vai sair com um pau na rua para que todos fiquem também daquele jeito. Só que a cada paulada será acompanhado de um grito, porém desiste por não conseguir correr atrás nem de uma tartaruga imagine atrás de alguém com medo de uma cacetada. 

Resolve jantar e se planeja para se dirigir para a cozinha. Apoia os pés no chão, empina a coluna...bem, esperem ele tentar empinar. Pronto? Ergue-se em câmera lenta lembrando-se das dançarinas que mexem o bumbum como se fosse de mola. Acredita que aquelas meninas não têm coluna vertebral. É uma nova geração que já nasce treinando para se tornar répteis. 

Consegue ficar de pé. Gira o tronco para um lado, aaarra , depois para o outro, uuura, para trás...caramba... para um pouco já suando  de dor. Fica em pé se olhando no espelho quebrado da sala. Agora foi que percebeu que está com a barriga despencando, logo ele que era tanquinho, agora nem secando.

As pelancas acompanham a barriga. Vai ter que se inscrever na academia, quem sabe, na próxima década. E agora? Prefere ficar pensando porque é a única coisa que não provoca dores, por enquanto, é pensar e bater os olhos. Quer que eu faça o jantar?, pergunta a empregada. Depois, deixe eu só me deitar nesse braço da poltrona. Deita-se com os pés no chão e o cóccix no braço do sofá-cama. 

Opa, é aqui, é aqui... ai ai. Foi mesmo em cima da vértebra magoada. Espera um bom tempo para abaixar as pernas. Enquanto isso, fica se perguntando como Rui Barbosa se comportava ao sentir dores. E Dostoiévski? Será que algum dia entrou em casa correndo com diarreia? 

O telefone toca. Tudo bem? Tudo. Alguma novidade? Tudo de velho. E a saúde? Nunca me senti tão bem, responde morrendo de medo que o colega lhe chame para correr amanhã.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.06.2022 - 22h01min.



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