NO RASTRO DA VIDA
Pensei que hoje só me dedicaria a tomar nota dos meus pensamentos atualizados, mas não: aqui chegou também o "passado", insistindo em ficar "presente", influenciando meu bem-estar no "futuro". Por "andar meio aéreo", derrubei meus remédios pela sala e passei meia hora juntando-os no mesmo frasco. Estavam todos medidos e pesados para o tratamento e não valia a pena desperdiçá-los. Fiz isso longe da mulher, pois ela detesta quando fico "miserando" em favor da economia doméstica.
Vou tomar nota das coisas que tenho que fazer. Foram quarenta e três tarefas anotadas sem nem saber se haverá tempo para executá-las, dentre elas, dar banho no gato. Pense num negócio chato é levar unhada de pet. Minha mulher me obriga, toda quarta-feira, a passar por isso, e nem pergunta se eu quero usar essa "tortura" como combustível para fugir do tédio.
Só não gosto de dançar. Acho muito feio um velho balançar o esqueleto com as pelancas acompanhando o ritmo. Aqui e acolá, vejo um casal se "amostrando" e digo sem que possam escutar: vão dormir e evitem o ridículo, pois acho que quem está aplaudindo o faz como galhofa. Danço nada! Minha velha é "doida" por forró, mas "nada de seu Zé".
Falar em seu Zé, depois de certo tempo usando cabelos brancos, até o nome de batismo vai embora junto com a cor do cabelo. Todo mundo só me conhece agora por seu Zé, só que nunca atendi por esse nome. É triste, e pior ainda é ouvir: "deixe o ancião passar; dê o lugar para o velhinho". Vão tomar injeção!, é o que respondo só para mim enquanto fico rindo, tendo consciência do quanto me dá raiva. Nem adianta expressar brabeza, pois se "perder a estribeira", eles gritam: "o véi pegou ar". Até já me chamaram de papai Noel queimado, motivo maior de eu não mais usar a barba comprida. Foi até bom porque só juntava poeira e amarelão. Como tenho o hábito de pitar, no queixo e no bigode ficava uma ferrugem só.
Estou usando peruca. Como não tenho mais força para dar uns tapas bons nos gaiatos, se não usar pelo menos um boné escondendo a careca, vão me chamar de aeroporto de muriçocas. É chato, mas fazer o quê?! Quando eu era novo, chamavam-me de negão e eu achava bom porque era símbolo de masculinidade, agora é pai Xangô, "nêgo véi", e assim vai.
Só não usufruo totalmente minha aposentadoria com receio que o bom-humor faça morada no "túnel dos problemas" e por lá fique, contribuindo para mudar meu estigma de velho ranzinza.
Procuro arquitetar um plano de ação "em cima das vinte e quatro horas por dia", entretanto, passo mais tempo planejando do que executando.
Tenho saudades do trânsito, da fila do banco, tudo que me irritava, agora... O cinema não me proporciona tanto prazer quanto antigamente, pelo contrário, vou lá mais para dormir do que para assistir. Quando saio, passo na sorveteria e as moças "não estão nem aí pra mim", negando-se até a me pedir sorvete. Geralmente, saboreio três bolas, só que peço uma de cada vez para dar tempo de alguém "encostar" e eu ter chance de puxar conversa. Parece que estou invisível ou com lepra. Olham e depois voltam o olhar para o campo de visão de onde estava. O que será que pensam? Tenho vontade de me trajar de Homem-Aranha para ver se me percebem, por outro lado, tenho medo de que a decepção seja insuportável quando descobrirem que dentro da fantasia há um velho sondado.
Nem sei mais quem é quem nesse "mundo de calças compridas" em que as usuárias andam assobiando, "transformando abordagens afetivas em produtos descartáveis". Com o tempo, aprendi que para cada época existem determinadas tarefas moldadas pela força do ser que se propõe a elas, e como não tenho mais tantas assim, conversar tornou-se meu trunfo.
Escuto, na mesa vizinha, discussões sobre competições, festas, etc. Meu pensamento viaja para quando eu "vivia nesse moído", e só hoje é que percebo que os assuntos circulam de acordo com a idade dos interlocutores.
Meu passatempo é ir à bodega do compadre sempre no horário marcado em que aparece uma "periguete" fazendo exibições corporais em troca de dinheiro. Quando a mulher dele não está, nós nos juntamos, aquele bocado de "velhos enxeridos", e ficamos a observá-la dançar por trás da prateleira. Tem um reservado que ela deixa a gente botar a mão, e só. Corre de volta para a casa vizinha onde faz faxina, entretanto, nunca esquece de recolher o dinheiro colocado no prato.
A mulher do compadre já sabe e fica vigilante, senão, ele passa todo o dinheiro da gaveta para ela, e nós também, só que o meu já é contado pela minha mulher e não há como escapar. Às vezes, escondo uns trocados que meus filhos me dão. Tem um deles que é sem-vergonha, igual ao pai, e deixa um pouco a mais sem que sua mãe perceba.
A dançarina é feia, mas é novinha e bem feita de corpo. O "tudo em cima" faz a festa dos que têm "tudo em baixo." Não é assim não, protestam os "pabulosos" querendo ser homem, e em seguida, sentam-se tossindo e escarrando na calçada com um peido acompanhando. O assunto principal é onde dói mais. O reumatismo me atacou ontem de madrugada, diz um escorado a bengala na árvore. Logo outro já vem com mais "exemplos doloridos," e passamos o tempo nesse "puxa-encolhe" até chegar a hora do almoço.
Alguns jogam dama, outros dominó, e nesse vaivém o compadre consegue vender umas cachaças com tira-gosto de rolinha. Acho que são pardais que os meninos vêm vender a ele. Um dia desses, avistei um dos meninos saindo da bodega com uns trocados e a baladeira no pescoço. Desconfio que sejam pombos o que ele diz ser nambus. Hoje tem coelho! Porém, fui avisado que "anda" desaparecendo gatos da vizinhança, infelizmente, ainda não foi a vez daquele que gosta de me arranhar na hora do banho.
Há um colega que fica só falando que bom era o tempo quando seu avô tinha mais de vinte escravas novas. Ele, molecote, não perdia um dia sem "passar" todas as vinte. Naquela época, ainda existiam as empreitadas para apanhar algodão. Vinha gente de "toda banda" e se arranchavam em barracas de lona, mas escrava mesmo é mentira. As pessoas "viviam em andanças" e muitas delas eram retirantes de profissão. "Chegavam de revoadas" com jumentos, éguas e meninos montados batendo nas latas penduradas que a gente ouvia de longe. Lá vêm os retirantes. A zoada era grande.
E foi com uma delas que me casei. Ela era "bem atirada." Montava em jumento que nem homem, mas nunca caía. Teve uma vez que o vizinho lhe pagou para ir deixar um burro brabo na fazenda vizinha. O bicho desembestou e ela, grávida do mais velho, batia sem piedade no lombo do animal sem ao menos pender de lado. Fiquei observando-a estarrecido e sem tempo de inventar uma reza. Logo em seguida, meu avô me obrigou a casar com a "cabrita." Já estava com mais de vinte e oito e a menina com treze. Se fosse hoje era pedofilia, mas naquele tempo, "menstruou já era mulher de casamento.
Casei-me e fui morar debaixo de um pé de oiticica, enquanto a 'casinha' ficava pronta. Tive que sair de lá mais cedo, pois o rio transbordou e fugimos numa madrugada, acordados com a lama batendo no fundo da rede. Foi sufoco sair do rancho com uma cascavel no pé da porta. Ela tinha vindo na enchente e, como só existia uma porta dividida ao meio e uma janela sem tranca, tivemos que sair pelos fundos pulando a janela. Somente seis dias depois foi que pudemos nos aproximar para ver o que havia sobrado.
Meu filho mais velho nasceu entre a enchente e a seca que se seguiu. Ele comia papa de mandacaru enquanto eu procurava um preá para misturar com farinha, mas era melhor do que hoje. Naquele tempo, eu ainda tinha a juventude a meu favor e nem me importava com muito sofrimento. Hoje, até se fizer um "friozinho", adoeço.
No sábado, íamos fazer a feira levando umas peneiras para trocar por sabão em barra. Minha mulher sempre foi muito boa tecelã. Aprendeu sozinha observando sua avó, e a "queda" por cachimbo também veio dessa época. Quem não fumasse e não tomasse uma pinga do pé do pote, não era mulher de família.
Nos finais das tardes, eu sentava na cadeira de balanço, único luxo, colocada no terreiro, e ficava degustando as batatas saindo quentinhas da panela de barro. "Vou buscar mais", dizia eu, sendo logo censurado: "se comer muito, não vai jantar direito." Vez por outra, aparecia milho verde plantado fora de época, quando os bichos deixavam.
As músicas, ouvidas no rádio, eram só depois do jantar. Meia hora para não gastar as pilhas. Dava para um mês se economizasse. O rádio era usado nesse horário e de manhã para saber quem tinha morrido. Lá, um enterro tornava-se o acontecimento mais frequentado pela vizinhança. Era nesses encontros que muitos namoros começavam, chegando ao casamento. As moças se enfeitavam todas para ficar no alpendre do morto fazendo hora e rindo baixinho ao olhar seus pretendentes. Havia as que choravam, essas eram tidas como as preferidas, tanto que quem não chorasse era desprezada pelos rapazes. Aniversário, ninguém comemorava. Era coisa de rico. Só se ouvia falar. Bolo, coisa de milionário.
Arrastávamos atrás de conversas dos viajantes. Muitas vezes, alguns vizinhos chegavam de viagem e todos íamos ouvir as histórias da cidade grande, das plantações e da fartura de café no "sul". Lá, quem viajava sempre ia para o "sul". Tudo de bom está naquelas terras, diziam os mais velhos. "Os cabras" chegavam com calças boca de sino, uma peixeira na cintura e uma fivela brilhando na frente do cós da calça. Fumavam um cigarro atrás do outro para dizer que estavam "bom de bolso". Às vezes, tirávamos um domingo para jogar no campo em que, no inverno, se plantava de tudo um pouco.
No sítio fim do mundo, a vida caminhava e dormia, dormia mais do que caminhava. Parecia que havia uma máquina rodando em câmera lenta cada estação, como se fosse o primeiro acontecimento da nossa existência, de tanto tempo que demorava. Lua cheia "custava" a vir, e os bebês passavam "uns dez anos" na barriga da mãe para só depois nascerem. Não sei se era impressão, mas as meninas "embuchadas", quando tinham bebês, já demonstravam "quatrocentos anos de envelhecimento".
Sempre aparecia alguém disposto a criar os filhos das mulheres que morriam de parto. Era comum e até sorte grande quando morriam os dois, pois o pai, sozinho para cuidar, achava melhor que a cria não sobrevivesse. As mulheres mortas eram enterradas com vestidos de mangas compridas. Diziam que lá no céu havia seleção para as bem-vestidas, e mamãe foi enterrada ainda nessa crença, quando meu irmão mais novo veio a lhe matar atravessado na barriga.
Depois apareceu um médico "vexado" que salvava as mães, só que fazia a cirurgia sem nenhuma enfermeira para lhe ajudar e depois passava vários dias com as roupas sujas de sangue, andando pelos matagais como a procurar por algo. Não existia outro, e ele salvava mesmo. Diziam que havia fugido da justiça por fazer parto de freiras. O convento foi fechado e sempre se ouvia o choro de menino novo lá dentro. Ninguém tinha coragem de adentrar ao local, principalmente nas noites de lua nova, o berreiro se intensificava.
Diziam também que quando ele salvava uma mãe, as lamúrias cessavam por uns dias. Depois, bastava alguma mulher estar perto de parir que o chororô voltava a ser escutado.
A primeira vez que ouvi uma banda de música tocar foi quando ele veio a falecer. A notícia foi bater em Roma e choveu de freiras por lá. Soube-se que era um padre-médico que fazia exorcismo e, de quebra, engravidava as freiras. Muitas crianças foram enterradas dentro daqueles muros. Eis a explicação para as lamúrias ouvidas noites adentro, disse-me um velho feiticeiro que morava sozinho num rancho entre as pedras da toca da onça.
Heraldo Lins Marinho Dantas Natal/RN, 10.05.2023 – 15h20min.
"No Rastro da Vida" de Heraldo Lins, nos leva a um mundo interior de um idoso que se vê perdido e deslocado no tempo e no espaço. A forma como o personagem encara sua velhice com bom humor e leveza é encantadora. O autor conseguiu criar uma história que nos faz refletir sobre a passagem do tempo e o valor das coisas simples da vida. Só a frase "O 'tudo em cima' faz a festa dos que têm 'tudo em baixo", já faz a leitura valer a pena. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirObrigado, Gilberto, pela força. Ontem tomei a vacina e estou parecendo com o personagem de noventa anos. Uma fraqueza que me impede de falar mais um pouco. Ainda bem que terminei a tempo, e só agora foi que chegou a ressaca. Boa sorte, e é sempre uma satisfação ver seus comentários. Peço que faça algumas correções, pois esse texto, de mais de duas mil palavras, sugou minhas energias e o pouco conhecimento da gramática que me resta.
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