sábado, 13 de maio de 2023

ABANDONANDO A DOUTRINA EM VOGA

 



ABANDONANDO A DOUTRINA EM VOGA


Deitado, permaneço olhando para o teto testando quanto tempo consigo ficar fazendo absolutamente nada. É um forro de gesso que há meses não apresenta nenhuma novidade em termos de rachaduras ou mudança de cor. Está acima do chão exatamente dois metros e trinta e oito e meio sem a preocupação que eu esteja colocando-o como protagonista. 

Eu já sabia dessa altura há bastante tempo, só que nunca disse a ninguém quando precisei medi-lo para comprar um "perfil de transição," e agora chegou a hora de confessar que guardo neste teto toda a minha paz. 

Quando quero pensar, olho para o lustre de vidro quadrado com duas lâmpadas que faz tempo, muito tempo que não preciso desparafusar a tampa para trocar as lâmpadas. Há pessoas que, para se acalmar, usam montanhas, florestas, os filhos, o pet, o carro, os livros... eu uso o teto.

Antes era "telhas de barro" onde as nuances de claridade serviam para brincar com os raios indo e vindo de acordo com o fechamento e abertura das pálpebras, só que também era motivo de estresse quando me mandavam consertar as goteiras. 

Eu tinha também uma montanha. Depois fui crescendo e ela tornou-se um morro, uma subida até ser transformada em ladeira asfaltada. Minha montanha desapareceu, e com ela a minha tranquilidade. Hoje passo por ela como se fosse uma namorada que enterrou seu amor e casou-se com outro por interesse. 

O rio que eu pescava foi assoreado. Arrancaram as árvores das suas margens e hoje a areia não me deixa ficar com os olhos abertos sem que não fiquem sujos de poeira. Nem os livros escaparam depois do incêndio. Tivemos que correr, apenas com a roupa do corpo, quando a fábrica vizinha de fogos de artifício só demorou alguns minutos para explodir após deixarmos nossa casa.

Depois disso, escolhi os tetos para me manter em paz. São as minhas plataformas de ideias com a segurança que onde chego posso usá-las sem apego. Gostaria de usar o céu para estimular meu cérebro, mas o sol sempre vem queimando qualquer conforto necessário para se produzir algo. Olhar para ele, durante a noite, vem a sensação de que estou “mirando” para um buraco cheio de olhos acesos, por isso prefiro um céu construído, um pouco mais baixo, branco ou de outra cor.

Hoje estou diante desse neve, com um diferencial que estou lhe expondo. Quando não se tem outras motivações, apela-se para expor nossos segredos, e esse é um deles. O outro é ficar em jejum até que as ideias sejam concluídas, significando dizer que já é quase meio-dia e ainda nem tomei café, porém não basta ter um ponto de referência e jejum, é necessário também ter “peito” para trocar o tempo que se tem para poder fazer o que gosta. São decisões importantes que balançam a estrutura do bolso sendo ameaçado pela doutrina que o tempo e o dinheiro foram criados para disputar a "corrida dos ratos," e ninguém pode parar para admirar a própria mente se avaliando. É preciso correr, e correr muito para quando “chegar num certo tempo,” o dinheiro conseguir proporcionar o direito de esquecer que está todo cagado num hotel de luxo.

A decisão de fugir do moedor de gente, não é fácil de tomar. O desapego do mundo da troca pelo conforto espiritual só é assimilado, que pena, depois de muitas caras quebradas. 

Para onde estamos indo?, não, não, a pergunta não é essa! Para onde estou indo?, assim deve ser, pois ficar olhando o teto sem a sensação de perda de tempo, são para poucos.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 13.05.2023 - 11h17min.



2 comentários:


  1. Heraldo Lins, em seu conto "Abandonando a Doutrina em Voga", através da visão do protagonista, você apresenta a busca por um refúgio para a mente em um mundo cada vez mais frenético e voltado para o consumo. A utilização do teto como objeto de contemplação e paz é uma metáfora inteligente que ajuda a construir a atmosfera introspectiva do conto. Sua reflexão sobre as escolhas que fazemos em relação ao tempo é pertinente e inspiradora. - Gilberto Cardoso

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Gilberto, por engrandecer, mais uma vez, o meu texto.

      Excluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”