domingo, 7 de maio de 2023

IDA SEM VOLTA

 


IDA SEM VOLTA


Procuro o que comer e só encontro batatas. Está difícil até de cozinhá-las com essa falta de gás e energia elétrica. Os bombardeios destruíram quase tudo. 

Eu tinha uma vaga ideia do que seria a terceira guerra mundial, mas calculei mal. Agora quase todos têm armas e dispõem de grupos para aterrorizar uns aos outros. 

À noite, muitos doentes saem às ruas para competir em cima dos restos amontoados que estragam a céu aberto. Nem água dispomos para o básico. Acostumei-me com a morte atuando perto de mim, mas às vezes me vem um pensamento desenfreado para correr mundo afora sem me importar o que encontrarei pela frente. Olho ao longe e sei que existem pessoas que irão precisar de mim, e então tento me manter vivo.  

Não há socorro e os demais ficam esperando que alguém morra para se apossar do pão guardado nos bolsos. Quem cair doente pode dizer adeus. O meu maior desafio está sendo permanecer com disposição para defecar no mato. Muitos doentes permanecem junto às fezes que eles mesmo produzem e ninguém se aproxima com medo do contágio. Uns tossem constantemente, atrapalhando o sossego neste galpão em que fomos nos aglomerando, agora com mais de mil pessoas. Fico esperando a hora em que este armazém seja explodido sem a menor misericórdia. De manhã até a noite, bombas e atiradores nos rodeiam sem saber que aqui está habitado. Conseguimos nos camuflar cavando buracos. 

Qualquer um só deve sair quando estiver escuro. O "matraquear" de metralhadoras desperta-nos curiosidade em saber quem está sendo vítima dos que atiram apenas para ver a queda. 

O mundo está resumido nessa rotina de medo e desconforto, e  nem no sono conseguimos encontrar a paz. Vivo sonhando me arrastando em direção ao nada, sem esperanças. A cada barulho, nos vem o pensamento que alguém nos descobriu. 

Ouvimos passos perto e depois tiros e mais tiros dando a impressão que já não estão vivos os que saíram esfomeados durante a madrugada procurando matar a fome. São carnes e ossos com "olhar caveirante" em direção a alguém que façam o favor de aliviá-los do sofrimento.

Não consigo disputar alimentos podres. Muitos brigam por isso se agarrando sem força para golpear o oponente, contudo ficam usando os dentes como arma. As barras de ferros, ou o que serve para intimidar, estão de posse dos mais poderosos. Aqui a casta dos donos de paus e ferros comandam a distribuição de alimentos que são encontrados enterrados. O papel dos batedores é sair para encontrar algo que sirva para comer. Voltam sem nada, mas sabemos que comem escondidos e o que sobra deixam em local sabido para uma nova busca. 

Toda noite há o ritual de carregar os que não sobreviveram. Muitos, ao transportá-los, já ficam por lá também. Os pertences são retirados e os “corpos secos” são jogados nus na vala. A roupa é dividida pelos que se dispõem a levá-los mesmo sentindo o frio da febre instalada.  

Soldados passam em fuga, mesmo assim procuram vítimas para fuzilá-las. É como se dissessem: eu vou, mais levo alguém comigo. Fico deitado a maior parte do tempo, não porque queira, mas as forças estão se esvaindo. Cada respirar me deixa mais fraco. Sinto que os músculos me abandonaram, principalmente os que me deixavam de pé. Somos comparados a lagartixas de tanto que nos arrastamos. 

Não sei porque o corpo teima em ficar vivo, mas sinto que há uma força interior dizendo que não chegou a hora. Aqui todos as crenças vêm à tona de forma embaralhada sem que eu possa me lembrar em que acreditava. Tento criar uma imagem do que eu imaginava ser, porém só me vêm imagens distorcidas, desaprumando a maneira de pensar. Às vezes estou olhando para um objeto e ele toma outras formas me fazendo acreditar nessa ilusão criada para me distrair e evitar que enlouqueça. 

Salivo constrangido só em pensar em quantas vezes abandonei a comida por falta de sal. Ah, se elas estivessem aqui, mesmo o feijão com espuma branca por cima, seria degustado como uma guloseima. 

Tenho certeza que se sobreviver, essas cicatrizes na alma irão me acompanhar pelo resto da vida. Sou um “jovem” de vinte e dois anos, por isso ainda resisto. Aqui não há ninguém com mais de trinta e cinco, contudo aparentamos noventa. Estamos uns farrapos humanos ao ponto de assombrar-me quando deparei-me comigo refletido. Quem eu vi foi um senhor com os olhos fundos e a pele ressecada assemelhando-me com uma múmia ressuscitada.   

Embora sofrendo com o frio, é bem pior quando começa a chover. A água invade nossos esconderijos e dormimos molhados, ou melhor, passamos a noite. No outro dia, o calor no galpão faz o papel de sauna. Alguns se arriscam a ficar na mata sendo que  crianças e mulheres já morreram encontradas pelas balas ou doenças. Algumas foram mandadas correr para o inimigo treinar tiro ao alvo, e as inocentes achavam que estavam participando de uma gincana e que seriam premiadas no final. Alguns homens foram eliminados com tiro na nuca mesmo. 

Os gemidos nos entristecem e nem podemos mandar calar a boca porque não mais temos força para isso, entretanto  os "barulhos agourentos" assumem o papel de um código avisando que alguém pior está dividindo o espaço da vida. Vontade tenho de chorar, contudo não existem lágrimas. Engolimos o choro como se o corpo estivesse economizando o esforço de expressar os sentimentos. 

Ninguém está forte, no entanto os que se mantém aparentemente calmos, caem menos ao se levantar. Aqui se disputa quem consegue dar três passos sem precisar se segurar nas paredes. É difícil dizer que nos acostumamos com o mal cheiro insuportável de fezes igual chiqueiro de porco. Lama, dejetos e restos de alimentos jogados no barro, mesmo assim ninguém quer sair para não perder o lugar e ainda correr o risco de ser torturado apenas para divertimento dos algozes. 

O corpo todo está cheio de chagas que supuram sem parar. Parece que a própria pele quer correr para longe. Soltam escamas e nem os cabelos dos braços ficaram. Dentes caindo e a língua ressecada tornou-se comum.  Alguns ficaram cegos e outros quase não escutam mais. Há um quadro terrível de infecções na barriga, ânus e até debaixo dos pés. Os molambos estão pretos com pus e terra misturados. Ninguém consegue mais tirar o cascão que um dia foi chamado de atadura. 

Quem pode manter os sapatos consegue ir andando trôpego em direção à grama encontrada na área entre muros. Os demais vão caindo um a um e já nem encontram quem os leve para a vala. Teve um que gemeu durante uns dias, de repente gritos em seguida calando-se para sempre. 

Ficamos torcendo para que o nosso vizinho morra e essa espera ansiosa mata mais do que a morte. Nesse mundo feroz, a própria vida torna-se a vilã e a morte, a salvação. Muitos dizem que querem morrer, entretanto o destino brinca de mantê-los longe do fim quase como para torturá-los. Perdemos todos os parâmetros de ser chamado de humano. Só não nos tornamos totalmente feras porque a fraqueza nos impede de ações mais enérgicas.  

Ouço sons de aviões bombardeando nosso galpão. Lá na ponta há fogo e gritos. É como se descobrissem um ninho de baratas. Muitos saíram de seus esconderijos e vêm trôpegos pegando fogo. A ação das armas químicas age nos que estavam mais próximo de onde houve a explosão. Vejo daqui a pele saindo como creme. Estão derretendo. Só me resta “ganhar a mata...!”



Heraldo Lins Marinho Dantas


Natal/RN, 07.05.2023 – 16h03min. 






2 comentários:

  1. "Ida sem volta" é impactante e mostra de forma crua e realista as consequências da guerra em um contexto apocalíptico. A descrição detalhada da vida dos personagens transmite uma sensação de desespero e tristeza que nos faz refletir sobre a importância da paz e da solidariedade. A linguagem simples e direta torna a leitura ainda mais tocante. É um texto intenso e nos remete a fatos históricos igualmente espantosos. Nos faz refletir sobre a fragilidade da vida e a importância de mantermos de pé os pilares da democracia.

    Gilberto Cardoso dos Santos



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  2. Quando Gilberto falou sobre a tristeza transmitida no texto, fui comprovar lendo para uma pessoa e ela disse que chorou. Nem reparei ela com os olhos cheios d’água, mas houve um momento que me deixei levar pela narrativa e também me emocionei.
    Desde ontem que trabalhava nesse texto, lendo e relendo e nem mais me tocava sobre as cenas narradas, e de repente quando me coloquei apenas no papel de leitor realmente fiquei chocado.
    Ao conversar sobre, a pessoa disse que havia uma outra que ela também ficou chocada. Foi uma que escrevi sobre as pessoas fazendo sopa com as vítimas da covid, isso logo no início da pandemia. Eu respondi que teria que rever porque não me lembrava.
    A literatura tem disso, nos envolve a tal ponto como se de fato o fato tivesse acontecido. Quando esse abraço do leitor com a narrativa acontece, é porque se pode dizer que houve a “simbiose artística.”

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