segunda-feira, 22 de maio de 2023

FILHO DEDICADO

 


FILHO DEDICADO


Ela saiu do carro dando conversa às empregadas que estavam a nos esperar na entrada da casa. Naquela noite, meu pai havia sido encontrado no jardim onde sempre ia fumar nos bancos brancos suspensos enquanto “tragava seus segredos.”  

O legista nem se deu conta da nossa aproximação. Estava transtornado por ser amigo da família e isso mexia com seu humor, pude ver de cima da varanda onde fui obrigado a permanecer. Disseram-me que havia sido uma execução vinda não se sabe de onde. Vizinhos? Bom, as duas casas fronteiriças estavam desocupadas e podia ter servido de esconderijo perfeito para os criminosos. 

Com papel e caneta na mão, uma policial tomava nota das medidas que um outro fazia. Para adiantar o serviço, muitas equipes vasculhavam os arredores após duas horas do fato ter acontecido. Minha mãe, aparentemente calma, observava com “cara de paisagem". 

Muitas pessoas continuavam sendo ouvidas, porém o remetente do pedido de execução “permanecia em mistério”. 

O anúncio da morte do meu pai saiu em todos os noticiários do país com artigos enfatizando que ele transitava com desenvoltura em todas as “tendências políticas” e ninguém encontrava motivos maiores para seu assassinato, mas, “em off,” desconfiavam de um certo suplente que havia debandado para a oposição, porém as suspeitas não se confirmaram com o avançar das investigações.

Minha mulher permanecia ao lado do pessoal da cozinha ouvindo o que “saía nas reportagens.” Ali era a “central de notícias clandestinas,” tendo em vista que todos os que “correram” tentando ajudar passaram pelo café servido junto com o pipocar dos “comentários extraoficiais.” 

O padre enfatizou as inúmeras qualidades do morto durante as exéquias noticiando que ainda não se sabia as verdadeiras motivações para o crime. Muitas testemunhas foram dispensadas sem maiores esclarecimentos, inclusive de outros Estados vieram investigadores a pedido do partido do qual ele era presidente, entretanto só serviram para tomar mais café acompanhados de pão de ló. 

Uma mulher apareceu com duas “moças já grandes.” Diziam ser filhas do falecido, momento em que minha mãe mandou expulsá-la da igreja. Não admitiria tal ofensa naquele momento. Depois soube que a “dita cuja” estava entrando com reconhecimento de paternidade, coisa que nem pude acompanhar da minha morada nova nas ilhas gregas. 

Deveria ter uma certa verdade naquilo. Ele sempre mandava a assessora ligar para nossa casa informando que estava em assembleia permanente devido às ameaças de intervenção. Até uma semana longe, ele já havia passado, porém um ou dois dias era comum, daí minhas dúvidas sobre outras famílias “apanhadas” nessas ausências. 

A exumação foi determinada pelo “Juizado Especial de Família.” Outras mulheres apareceram com mais filhos e eu nem desconfiava que tinha tantos irmãos e irmãs distribuídos de norte a sul do país. Assim que mamãe faleceu, cuidei logo de vender tudo e fugir para longe. Ainda bem que eu já havia liquidado o patrimônio quando o a justiça declarou mais de dez irmãos que ficaram sem direito à herança.

Providenciaram uma praça para mudar o nome para o do meu pai. Escolheram uma com nome de flor sabendo que os vegetais jamais iriam reclamar a modificação, só que os comerciantes do entorno, por mais que protestassem, tiveram que gastar com a nova mudança de endereço, especialmente, nos carimbos e nos talonários de notas fiscais. 

Não foi suicídio. Ela morreu durante a noite “sem dar um pio,” ficou provado no laudo médico, quem sabe, remédio para dormir. Desde que o velho se foi, minha mãe via vultos andando dentro de casa. Suas visões tiveram grande influência para ela despedir quase todas as auxiliares. Dizia que as “pessoas chorosas,” ao se lembrarem dele, estavam destruindo nossa família, mas acho que a solidão fez o que ela pensava ser a influência negativa de algumas auxiliares.   

Naquela manhã amanhecida com ela morta, uma lufada de vento chegou-me onde eu morava. Senti um odor de “flores de cemitério” que me provocou ânsias. Tive a intuição de ir lá, sem ao menos saber porque estava a caminho. Parecia uma profecia empurrando-me para o casarão zero nove, como ficou conhecido aquele endereço depois do total de projéteis encontrados no corpo do meu pai.  

Era evidente que estávamos à beira da falência. Os trabalhadores levaram uma boa parte do patrimônio em direitos trabalhistas contribuindo para o desespero dela. O que ela falava de forma enérgica era que nunca chegaria a ficar demente, no entanto foi o que mais se viu nos últimos meses de vida. Sempre dizia que tudo dependia dela e que ainda estava lúcida, apesar de esquecer até que cheiro era aquele da panela esquecida no fogo. 

Respirei fundo ao saber que outras formas femininas diziam ter direito ao espólio por terem sido amantes. As meninas não passavam de adolescentes e não tive como respondê-las de tão cansado que me encontrava. 

As recordações me faziam lembrar dos dois que não mais estavam presentes, e meus irmãos, conhecidos por fotografias nas manchetes, nada significavam. Eu precisava limpar a memória, e nada mais justo do que viajar e me instalar longe daquilo que me enjoava. 

Hoje, encontro-me distante e rico sem que ninguém desconfie da minha participação naqueles assassinatos por motivações financeiras. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.05.2023 – 18h17min.




2 comentários:

  1. Traição, segredos de família, herança e as consequências psicológicas das ações dos personagens, são os ingredientes deste conto. O autor construiu uma atmosfera de mistério e intriga ao longo da história, mantendo o leitor envolvido e surpreso com os desdobramentos. O conto nos faz refletir sobre os segredos que podem existir nas relações familiares e as consequências devastadoras que podem surgir a partir deles. Boa trama. - Gilberto Cardoso

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  2. Mais uma vez, Gilberto, só agradecimentos. Seu comentário está sendo de grande valia na questão de estímulos positivos. Vamos continuar para que possamos prestar um serviço de boa qualidade, esse, acredito, é o nosso intuito.

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