VIAGEM DIFÍCIL - Heraldo Lins

 

VIAGEM DIFÍCIL 

Depois da saída, alguém pula no desfiladeiro. Alguns passageiros correm para as janelas para ver que horas o rapaz abrirá o paraquedas naquela ação de se mostrar para a namorada. Ela sabe que ele estará lá embaixo na próxima parada lhe esperando, por isso nem se preocupa.

Esse salto vinha sendo planejado há meses e dependia dessa proeza para que ela o aceitasse como seu futuro esposo. Muitos acharam que era um suicídio e já pensavam em ficar com a noiva. Ela está grávida. Verdade que é de um outro? É sim, mas ele nem sabe e nem quero que vocês digam a ele. Pronto, lá vem traição, briga e morte. Vamos tirar esse casal da nossa conversa. Faz de conta que ninguém pulou. Pode ser, mas é muito longo o caminho para ficarmos só esperando chegar sem falar sobre o que aconteceu. Não se preocupem porque neste momento o trem quebra e isso gera reclamações. Logo agora que eu já estava me acomodando para dormir sossegado nesse dia maravilhoso. Ninguém falou que essa viagem era durante o dia. Saibam que estamos em plena escuridão da meia-noite. Agora só falta aparecer um lobisomem. Não, não falta, ele encontra-se entre vocês. E chuva? Faltava porque agora chegou essa com ventos fortes.

Além de lobisomem, uma chuva, daqui a pouco vai ter um grilo com muitos "cricris" para dar um clima de terror de terceira categoria. É melhor tirar o grilo, excluir o lobisomem e voltar para uma viagem tranquila em plena claridade. Não se pode ignorar o lobisomem porque ele é o próprio maquinista. Geralmente é um conde, mas aqui o lobisomem figura como sendo maquinista!? Ele era um, mas ficou entediado e resolveu "maquinar" seu próprio trem. Ah, logo vi que todo lobisomem que se preza geralmente é um conde.

Uma explosão aconteceu! Onde? Veio de fora. Há criminosos querendo abrir a caixa forte. Acha que vão conseguir? Não, não conseguem porque o lobisomem matará todos eles. É mesmo, já havia esquecido que ele é imune a balas, a não ser se for de prata. Ninguém pode avisar ao chefe que ele precisa de balas de prata. Tarde demais, já viraram jantar de lobisomem. Comeu todos? Não, só bebeu o sangue. E aí? Vamos ficar parados? Consertaram o trem e ele está indo, não sentiu não? Estava tão chocado com esse bicho sanguinário que pensei que seríamos as próximas vítimas. Não se preocupe!, ele está bem alimentado. 

O trem passa pelo tão esperado túnel e é nesse momento que uma mulher grita com a dor do parto. E agora? Não tem ninguém para auxiliá-la. Eu! Quem é você? Sou enfermeira chefe do hospital da próxima cidade. Estou indo para lá e custa muito prestar esse serviço. Então tá, vá lá. 

O menino nasceu quando o trem estava ainda no túnel. Ao sair, mais uma menina veio ao mundo. Lá na frente, mais um galego, depois outro preto, um crioulo e uma galinha. 

A galinha nasceu da mulher? Não, a galinha soltou-se e ficou voando no corredor. Muitos tentaram segurá-la, porém só parou de bagunçar quando recebeu um pipoco de bala na asa esquerda. Veio ao chão. Pega, pega, pegoooou!  Amarraram a galinha junto com a dona do porco. Tinha um porco? Claro, a mulher ia levando para comercialização. Essa mulher tem marido? Morreu na semana passada ao viajar aqui nesse mesmo lugar. Como assim? Esse vagão tem o costume de se soltar. É melhor irmos para o próximo. Foram todos para o outro e nele ficou só a mulher com os animais. 

Quantos Nascimentos? Quinze. Quinze crianças? Não, quinze foi o número sorteado no jogo só bicho. Ganhou quanto? Perdi meia dúzia de notas cheias. 

Chegamos à cidade que estávamos falando que era a próxima. Alguém vai ficar? A enfermeira deve descer! Está esperando o quê? Receber o dinheiro pelo meu trabalho de ajudar às crianças a nascerem. Não tenho dinheiro, mas pode ficar com uma delas. Ande logo que já estamos terminando o abastecimento. Lá se foi a enfermeira com um problema nos braços. O trem parte, ou melhor, se parte ao partir, e a mulher, a galinha e o porco ficam para trás. Ainda bem! Já nem aguentava mais conviver com aqueles três.

Está de noite? Já amanheceu faz tempo. Eu nem percebi. Também você não larga o olho desse baralho. Ajuda a passar o tempo. O tempo não precisa de ajuda para passar. Diga assim: sou viciado. Eu digo se você pagar uma cerveja. 

Tuck tuck tuck... esse é o barulho do trem subindo a serra para o próximo desfiladeiro. Quem será que vai pular? Pule você! Vou ao banheiro. Que pena, o banheiro sumiu junto com a galinha & companhia Ltda. Como faço então? Coloque as nádegas na janela e faça. Acho melhor fazer num saco e depois eu jogo. Não precisa mais. Chegamos, e nesta estação tem banheiro. Seja rápido.

Tem alguma criança nesse trem?, pergunta um rapaz "doido" para subir de nível no jogo parecido com o da baleia azul. Por que esse rapaz está amarrado? É para jogarmos lá de cima para ver se ele sabe voar, já que acha que a vida é um jogo para ficar matando crianças a machadadas. Ah, quer dizer que você ainda está nesse nível? Pois saiba que já passei por ele e estou indo matar minha mãe, disse um outro viciado. Deveria existir um jogo para ir ajudando às pessoas e só passava de nível quem doasse um rim, uma retina. Jamais será inventado porque não atrairá interessados em jogar.

Para onde está indo este trem? Ouvi uma mulher gritar com aquele que está ali na frente para ele ir para a china, e como ele entrou, acredito que estamos indo para lá. 

Vai demorar muito para chegar!? Acho que faltam, mais ou menos, umas duzentas palavras até o final. Quer dizer que se ficarmos em silêncio nunca chegaremos? Isso mesmo! Ele é movido a conversas, não importando se são boas ou insuportáveis. Posso cantar? Não, nem cantar nem dormir. Mas aquele ali está dormindo. Ele está morto. Morto? Sim, é porque as funerárias preferem comprar um lugar sentado para o morto do que levá-lo dentro de um caixão. Torna-se mais barato. Morreu de quê? De cansaço. Estava cansado de viver. Agora está descansando, como dizem com todos. Quer dizer que ninguém está vivo, apenas cansados?

Piuiiiiii. Ainda bem que nesse trem há buzina para interromper conversas além da nossa compreensão. Se apitou é porque tem alguma coisa sobre os trilhos. O que será? São as travas dos erros que precisam ser removidas...   

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.04.2023 – 06h58min.