sexta-feira, 10 de março de 2023

AJUSTE GEOGRÁFICO

 


AJUSTE GEOGRÁFICO


Disseram-me que sou desafinado, e minha frustração aumentou ainda mais quando soube que isso significa cantar fora dos padrões determinados pela física acústica. Trocando em miúdos: emito sons em desigualdade com os instrumentos musicais. 


Assim que senti o choque, fui logo em busca de um professor virtual para saber o que fazer diante dessa deficiência velada. Mandaram-me fazer o "som de carro" que "menino buchudo" faz quando está brincando na areia. Seria para aquecer a musculatura diafragmática e, com isso, sustentar a respiração no momento de cantar. E não é só isso. Há milhares de outros exercícios com duração que leva quase o dia todo se a pessoa quiser subir num palco, mas para apenas gravar no rascunho do WhatsApp, de qualquer jeito dá certo.  Optei em permanecer desafinado.


Agora quem quiser me acompanhar, que desafine seu instrumento. Fiquei revoltado, pois antes de saber disso eu era feliz como "cantor consumido" no seio familiar. As pessoas, para quem eu enviava minhas gravações, aplaudiam-me de pé. Que voz linda, diziam. Depois que baixei um afinador de voz e vi que o ponteiro não fica parado em cima da nota, veio-me um grande desespero porque os hertz não mentem. O único atenuante foi perceber que até o vento faz o instrumento oscilar transformando-me em parceiro da ventania. Ela é natural tanto quanto eu, por isso o mundo da cultura vocal não será visitado por nós. 


Já decidi. Vou lá para o pé da serra cantar "sem medo de ser feliz." Depois de duas horas soltando a voz e os ventos, volto para a civilização onde tudo é medido e pesado. Falo pesado porque, em matéria de peso, a física mais uma vez me condena, tanto através da balança quanto das medidas de largura. No item de performance corporal, também estou desafinado. As roupas têm que ser feitas com tecido sobrando para os reajustes de final de ano. Isso me deixa mais triste ainda, pois o padrão imposto, não sei por quem, me condena também no item de cor. Sou preto da cabeça branca, e esse biotipo nunca foi aceito pelos adeptos da raça ariana. Dessa vez, é a física óptica que me tira o juízo. 


Estou pensando em fazer uma cirurgia bariátrica para evitar ser discriminado, mas sei que isso não resolve porque meu psicológico é de um gordo, preto e velho, e agora, desafinado. Estou com medo até de ir ao médico e receber a notícia que estou morto faz tempo.  Sim, porque nossos traumas tem início no momento em que decidimos acreditar no que querem que acreditemos. 


Se eu for morar em Bodi, na Etiópia, tudo bem. Lá, além de aplaudirem gordos e pretos, talvez os desafinados de voz linda façam sucesso, e é para lá que vou, decidi agora.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 10.03.2023 - 08h45min.



Um comentário:

  1. Boa decisão! Na tribo Bodi a gordofobia não tem vez. Mas cantam e dançam em sintonia com os instrumentos. rsrsrsrs - Gilberto Cardoso dos Santos

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