quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

DISCURSO DO POETA AUGUSTO DOS ANJOS SOBRE OS ESCRAVOS

 


DISCURSO DO DR. AUGUSTO DOS ANJOS

NO TEATRO SANTA ROSA, A 13 DE MAIO DE 1909

 

Exmas. Senhoras,

Meus Senhores,

Todas as minhas capacidades anônimas de minguada penetração filosófica descobrem, no microcosmo específico da consciência individual, a oficina milenária das grandes energias transformadoras, onde trabalha dia e noite, gastando somas incalculáveis de substância nervosa, o dinamismo milagroso que, unificando conscientemente os destinos humanos, avança, num acelero de exército sôfrego, para a obra definitiva da civilização, ao mesmo tempo que esteriliza, na sua passagem, a larva obstinada dos misoneísmos tardígrados, e mata para todo o sempre a influenciação nefasta dos rígidos cânones e cartapácios antiprogressistas.

Galileu dizia que “os homens não são semelhantes a cavalos atrelados a uma carruagem, puxando todos ao mesmo tempo; são como cavalos livres preparados para correrem e um dos quais ganha o prêmio.”

Se a consciência individual, segundo Palante, é mãe do progresso, é o gérmen misterioso que em si contém o futuro, semelhante à primeira célula elementar, germinação obscura e inquieta da vida que em si traz a imensa gênese das vidas futuras, a escravidão é a morte absoluta dessa consciência, é a crosta tegumentária negativísta que impede o desenvolvimento psicogenético da racionalidade, e reduz talvez a pars nobílis do ser humano à mais baixa e à mais réptil de todas as situações animais. ;

Destarte, o eu psicológico do escravo lembra uma noite infinita e incomensurável, onde as estrelas principais se transformaram em massas — cósmicas enegrecidas, rolando sem a superintendência  e sem as leis mantenedoras do equilíbrio universal, na imensidade cavernosa do Espaço.

O escravo é a negação vertebrada do impulso evolutivo que existe ocultamente no fundo de todas as coisas, dando movimentação diuturna ao Universo, esse imenso quadro teleomecânico, na expressão genial de Hartmann, onde o pluralismo dos efeitos é filho direto do singularismo das Causas, e a atuação assídua dos agentes exteriores, diferenciando a stirpe radiolar primitiva, desomogeneiza até as Organizações mais estacionárias da plasmodomia haeckeliana!

A alma do escravo é como a fotografia de um túmulo, em que a consciência — este milagre espantoso da matéria cerebral, desapareceu completamente, como o cortejo funerário de todas as sinergias dinâmicas que presidiam, cheias de vida autônoma, a engrenagem superior de seu primítivo funcionamento. De sorte que, pouco a pouco, como que obedecendo a uma fatalidade mecânica de diminuições sucessivas, - operadas por um instrumento bizarro de redutibilidade graduada, os elementos psíquicos do escravo vão perdendo o estímulo congênito que eleva o homem acima do pandemônio caótico das predisposições irracionais da espécie e não atende mais à solicitação degenerada da besta ególatra, que dorme, como um velho funcionário permanente, na coesão indispensável de todos os agregados vivos da Natureza.

Há então superveniência imediata de uma espécie de amorfismo intelectual e emocional! na cerebralidade subordinada do escravo.

 As ideias superiores e os sentimentos superiores, afugentados e dispersos, no atabalhoamento característico do êxodo forçado, desertam aquele em ruínas onde as lâmpadas da razão se apagaram e a tocha universalista de Bacon nunca mais terá a capacidade libérrima de funcionar.

E o indivíduo, então, escorraçado como um cachorro “pintado inteiramente de lepras, prejudicando a sensibilidade com se tornar um aparelho receptor exclusivo de sensações dolorosas — quotidianas, faz à noite, no desabrigo pestilento dos lençóis imundos , depois do chicote inquisitorial das gentes xantocróides, o trabalho ignorado e decepcionante de auto-inspeção psicológica, e como um financeiro calculista, dando balanço onímodo e escrupuloso à urna avarenta da agiotagem anual, apura — o resultado sintático daquele inventário.

E é como quem assiste conscientemente, subtraído ao império das leis físicas e químicas, à luz da razão sadia e de todos os estemas vibráteis, o espetáculo da desintegração das substâncias originais, que entram, como uma república de contribuintes orgânicos, na produção biológica  da fenomenalidade vital que se escapou dos elementos anatômicos, e começou a entrar na parte primitiva do todo cósmico, quebrando aquela cadeia de carne e sangue, em que se escondeu um dia para cumprir um destino que a Filosofia, com todos os seus métodos de especulação aristotélica, baconiana e cartesiana, ainda não nos pôde revelar.

E começa a agonia do escravo. O sentimento nobre de sua raça, tornada quase infecunda pelo trabalho esterilizador e pelo fatalismo dissolvente da homogenia agenésica, que é a última resultante das degenerescências étnicas, não bate mais nas paredes musculares do seu coração!

Ah! a sua raça é ele mesmo, arrancado brutalmente da solidariedade  humana, no seu esconderijo porco de animal maltratado, puxando como um boi paciente a carga vexatória de uma vida que não é somente dele, mas de todos os que sangram com ele, em comum, entregando a curva plástica do dorso muçulmano à vergalhada infamante dos suseranos ferozes, e confundindo-se no mesmo nível mental do imobilismo idiossincrático das idéias paralisadas e das emoções abortadas, que a etnografia constata ser um produto lídimo da hereditariedade funcional e da adaptação progressiva que lhes determinam esse negativismo fechado para o desenvolvimento latitudinário de suas qualidades emocionais e espirituais.

E o que lhe assoma aos lábios, impetuosamente, numa irrupção espontânea e incoercível, é o grito instintivo de sua raça castigada, é a canção unitária dos vencidos, toda a escala chorada das afeições perdidas, na dissolução aberratória da filoprogênie religiosa que esses homens de cabelos louros, e alva pigmentação epidérmica, lhe vedaram para todo o sempre, gritando-lhes aos ouvidos:

“Tu não terás filhos!

Dos peitos de tua mulher escorrerá apenas, para manchar o mundo, um leite improfícuo e simplesmente animal!

A tua mulher é dos brancos, pertence ao patrimônio inteiro de nossa libidinagem, os teus filhos constituem apenas o prolongamento desclassificado de tua subalternidade étnica, o Estado, que o logos e é a razão suprema, não protege a tua vida, a tua propriedade e a tua liberdade, porque tu não possuis esses superatributos inalienáveis e imprescritíveis do nosso eu bramânico e privilegiado!”

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