quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

POR UM TRIZ - Heraldo Lins

 




POR UM TRIZ


A onça, sorrateiramente, aproximava-se subindo os degraus que dava para uma porta. Há dois dias que não se alimentava salivando ao sentir correntes sanguíneas por perto. Lá dentro, pessoas dormiam. 

A criança levantou-se e ficou mais sossegada com o copo d’água tomado sofregamente. Igual à onça, precisava ingerir algo. Ficou olhando o que escolheria diante daquela fartura de guloseimas. Além de mouse de maracujá, havia também geleia de goiaba, queijo de coalho, uvas e ameixas, sem caroços, arrumadas nas embalagens transparentes, umas em cima das outras sendo apresentadas pela claridade da luz vindo da geladeira aberta. 

Do lado de fora, ao pé da porta, o cão de guarda dormia aconchegado em suas patas dianteiras. Era um baita cão adulto com várias medalhas de caça que deixava a família tranquila quando estava de prontidão. Brinquedos espalhados ao redor não atrapalhavam seu sono. 

De dentro da casa, se alguém acessasse o dispositivo móvel poderia ver a onça, "pata ante pata" farejando o perigo à sua frente. Ninguém esperava visitas nem o cão desconfiava que suas habilidades seriam testadas.

A mãe permanecia sendo torturada por um pesadelo onde seu filho era estraçalhado pelas feras comuns naquela região de mata virgem. Por descuido, a chave permanecia na fechadura.

Não chovia nem era noite de luar, muito menos grilo algum estridulava. A onça olhava de lado enquanto colocava mais uma pata, delicadamente, no degrau de cima. O silêncio era moeda de vida ou morte. O cão se mexeu, a onça parou, a mãe acordou. Filho? Estou aqui! O que faz acordado a essa hora da madrugada? Vim tomar água. Vá para o seu quarto. 

A onça, com sua visão privilegiada, desviava-se, cuidadosamente, dos brinquedos espalhados pela escada escura. Ficava parada a maior parte do tempo de aproximação tendo calculado cada passo em cadência com a respiração.

A mãe lavou o rosto na pia da cozinha ainda tensa com o pesadelo. Pela janela de vidro, “olhou” o silêncio do pátio onde uma das caminhonetes estava estacionada. Amanhã teria que levá-la para a revisão dos primeiros mil quilômetros. Seu expediente terminara há pouco com os trabalhos trazidos para casa. Lembrou-se dos documentos esquecidos no porta-luvas. Se deixasse que o dia clareasse, com certeza, esqueceria de levá-los para dentro. 

O menino, debaixo do cobertor, lembrou-se dos brinquedos espalhados. Mesmo estando sob guarda, seu vizinho era amigo do cão e se soubesse que estavam ali, viria furtá-los, principalmente o robô que ganhara há pouco mais de uma semana. Caso resolvesse descer para o térreo, iria ouvir uma dose de revolta da mãe por causa do pai voltando sempre embriagado altas horas.  

O felino ouvia atento o barulho vindo da cozinha. O cão, não, este dormia sem se dar conta que havia uma onça respirando seu respirar. 

Sentada à mesa, a mãe chorava baixinho enquanto tomava uma xícara de café. Quantos sonhos sonhados juntos. A festa de casamento, a esperança de montar seu consultório naquele fim de mundo, tudo estava se esvaindo. Levantou-se resoluta para ir ao porta luvas. 

O menino, por não conseguir dormir, resolveu trazer o robô para um lugar mais seguro. Quando ia chegando à porta, a mãe estava dando a última volta na chave para sair em busca dos documentos. Seu pai ainda pode ver a onça carregando, para o matagal, o cão de guarda abocanhado.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 02.02.2023 - 13h38min



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