A BECA E A MORTALHA
Eu conhecia
Zé de Nica de vista e já era amigo de alguns de seus familiares, até que ele
veio morar de favor em uma casa cedida por uma de suas irmãs, na ponta da rua
em que residíamos. Era um negro alto, magro, forte e com os cabelos
completamente brancos. Casado desde muito jovem, ele e sua esposa tiveram
apenas um filho, que já havia falecido, e todos os outros morreram ainda bebês.
Era um exemplo vivo de um sertanejo pobre do século XX: trabalhava desde cedo e
com o pouco que ganhava, comprava a vida de todos os dias. Nunca teve um
transporte que lhe encurtasse as distâncias e o tempo, suas pernas o levavam para
os trabalhos e o traziam de volta todos os dias. Agora vivia bem, pois tinha
conseguido uma aposentadoria, algo que nunca havia imaginado em seus sonhos, e
podia dormir tranquilamente, sem se preocupar com o que comeria no dia
seguinte.
Agora ele se
dava ao luxo de comprar um toca-fitas e todas as noites se sentava à porta de
casa, ouvindo suas músicas preferidas, enquanto vendia doces e cigarros da
praça para os vizinhos.
Foi por causa
desse comércio, mais ou menos no início do ano 2000, que ficamos amigos. Eu
costumava comprar meus cigarros depois de um dia de trabalho como recém-formado
e, enquanto fumávamos, ele me contava histórias sobre sua vida, especialmente
sobre os lugares em que já havia trabalhado. Quando conversava com ele, era
como se estivesse conversando com meu pai, pois as vidas deles eram muito
semelhantes.
Um dia,
confessei a ele que, das músicas que ele ouvia, as de Santana, o cantador, que
eu havia conhecido por ele, eram as que mais apreciava. Prontamente, ele
retirou a fita do gravador e me deu. E assim fortalecemos nossa amizade.
Em outro dia, ele me disse que estava muito doente da próstata e que tinha ido ao médico, que recomendou que ele não trabalhasse mais em ambientes quentes e seguisse um tratamento rigoroso. Em pouco tempo, ele estava na cama, sua banca de doces vendida e o gravador silenciado.
Meu coração
doía ao visitá-lo. Ele sempre me pediu que pegasse algum dinheiro que estava na
cabeceira da cama e lhe trouxesse um frasco de analgésico, pois as dores eram
insuportáveis. Um dia ele me pediu para comprar uma corda e amarrá-la num
caibro para ajudá-lo a se levantar da cama. Claro que não atendi ao seu pedido
e saí de lá chorando.
Em um sábado
de manhã, uma sobrinha dele veio me buscar, dizendo que o fim estava se aproximando.
Naquela cama simples, ele respirava com dificuldade. Uma vela ao lado esperava
o momento de cumprir a tradição. Enquanto esperava o momento certo de segurar
sua mão pela última vez, rezei. Assim, cumpria um dos costumes da minha bisavó
e suas irmãs, que era ajudar a vida a nascer e fazer-lhe companhia no momento
de sua partida.
Na época, não
havia funerária naquela região e os familiares mantinham o antigo costume de
preparar o corpo para o velório. Ninguém se ofereceu. Perguntei a um amigo se ele
tinha coragem, e com apenas 15 anos, ele respondeu que estava lá para fazer o
que fosse preciso.
Despimos o
morto com o respeito e cuidado necessários e o lavamos como se estivéssemos
banhando nossos pais. Minhas lágrimas se misturavam à água com que o
banhávamos.
Ao final,
pedi à sua esposa que me trouxesse a melhor roupa para vesti-lo. Ela me
entregou uma calça e uma camisa velhas e encardidas. Foi então que me lembrei
de que eu tinha em casa a camisa de manga comprida e a calça da minha
formatura, que ficaram muito bem nele.
tião (pseudônimo de um educador)
Muito bom... Emocionante... Parabéns!
ResponderExcluirAmei! Parabéns!
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