terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A BECA E A MORTALHA - tião

 


A BECA E A MORTALHA 

 

Eu conhecia Zé de Nica de vista e já era amigo de alguns de seus familiares, até que ele veio morar de favor em uma casa cedida por uma de suas irmãs, na ponta da rua em que residíamos. Era um negro alto, magro, forte e com os cabelos completamente brancos. Casado desde muito jovem, ele e sua esposa tiveram apenas um filho, que já havia falecido, e todos os outros morreram ainda bebês. Era um exemplo vivo de um sertanejo pobre do século XX: trabalhava desde cedo e com o pouco que ganhava, comprava a vida de todos os dias. Nunca teve um transporte que lhe encurtasse as distâncias e o tempo, suas pernas o levavam para os trabalhos e o traziam de volta todos os dias. Agora vivia bem, pois tinha conseguido uma aposentadoria, algo que nunca havia imaginado em seus sonhos, e podia dormir tranquilamente, sem se preocupar com o que comeria no dia seguinte.

Agora ele se dava ao luxo de comprar um toca-fitas e todas as noites se sentava à porta de casa, ouvindo suas músicas preferidas, enquanto vendia doces e cigarros da praça para os vizinhos.

Foi por causa desse comércio, mais ou menos no início do ano 2000, que ficamos amigos. Eu costumava comprar meus cigarros depois de um dia de trabalho como recém-formado e, enquanto fumávamos, ele me contava histórias sobre sua vida, especialmente sobre os lugares em que já havia trabalhado. Quando conversava com ele, era como se estivesse conversando com meu pai, pois as vidas deles eram muito semelhantes.

Um dia, confessei a ele que, das músicas que ele ouvia, as de Santana, o cantador, que eu havia conhecido por ele, eram as que mais apreciava. Prontamente, ele retirou a fita do gravador e me deu. E assim fortalecemos nossa amizade.

Em outro dia, ele me disse que estava muito doente da próstata e que tinha ido ao médico, que recomendou que ele não trabalhasse mais em ambientes quentes e seguisse um tratamento rigoroso. Em pouco tempo, ele estava na cama, sua banca de doces vendida e o gravador silenciado.

Meu coração doía ao visitá-lo. Ele sempre me pediu que pegasse algum dinheiro que estava na cabeceira da cama e lhe trouxesse um frasco de analgésico, pois as dores eram insuportáveis. Um dia ele me pediu para comprar uma corda e amarrá-la num caibro para ajudá-lo a se levantar da cama. Claro que não atendi ao seu pedido e saí de lá chorando.

Em um sábado de manhã, uma sobrinha dele veio me buscar, dizendo que o fim estava se aproximando. Naquela cama simples, ele respirava com dificuldade. Uma vela ao lado esperava o momento de cumprir a tradição. Enquanto esperava o momento certo de segurar sua mão pela última vez, rezei. Assim, cumpria um dos costumes da minha bisavó e suas irmãs, que era ajudar a vida a nascer e fazer-lhe companhia no momento de sua partida.

Na época, não havia funerária naquela região e os familiares mantinham o antigo costume de preparar o corpo para o velório. Ninguém se ofereceu. Perguntei a um amigo se ele tinha coragem, e com apenas 15 anos, ele respondeu que estava lá para fazer o que fosse preciso.

Despimos o morto com o respeito e cuidado necessários e o lavamos como se estivéssemos banhando nossos pais. Minhas lágrimas se misturavam à água com que o banhávamos.

Ao final, pedi à sua esposa que me trouxesse a melhor roupa para vesti-lo. Ela me entregou uma calça e uma camisa velhas e encardidas. Foi então que me lembrei de que eu tinha em casa a camisa de manga comprida e a calça da minha formatura, que ficaram muito bem nele.



tião (pseudônimo de um educador)

 

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