sábado, 4 de fevereiro de 2023

15 PENSAMENTOS DE AILTON KRENAK

 



1. Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a Covid-19.


2. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam se manter agarrados nessa Terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. Esta é a sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Existe, então, uma humanidade que integra um clube seleto que não aceita novos sócios. E uma camada mais rústica e orgânica, uma sub humanidade, que fica agarrada na Terra. Eu não me sinto parte dessa humanidade. Eu me sinto excluído dela.


3. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade e nos alienamos desse organismo de que somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.


4. Estamos viciados em modernidade. A maior parte das invenções é uma tentativa de nós, humanos, nos projetarmos em matéria para além de nossos corpos. Isso nos dá sensação de poder, de permanência, a ilusão de que vamos continuar existindo. A modernidade tem esses artifícios. A ideia da fotografia, por exemplo, que não é tão recente: projetar uma imagem para além daquele instante em que você está vivo é uma coisa fantástica. E assim ficamos presos em uma espécie de looping sem sentido. Isso é uma droga incrível, muito mais perigosa que as que o sistema proíbe por aí. Estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra. 


5. A maioria das pessoas não só come coisas aparentemente envenenadas, tipo morangos e tomates, como também consome muita coisa que nem sabe o que é. Tem uma composição lá qualquer, cheia de nomes que não sabemos o que significam. Ora, como é que você vai acreditar naquilo? Podem ter processado qualquer lixo e estarem te dando para comer. Por isso, seria muito melhor a gente cuidar da nossa sementinha, ver ela brotar, acompanhá-la, para então colher. Só assim você vai saber de onde vem o que come.


6. A rotina é como uma monocultura. Uma monocultura dentro da vida. Ora, em nenhuma situação a monocultura é boa. Nem quando é no interior de si, sozinha, porque ela tira nossa conexão com todos os outros sentidos de estarmos vivos.


7. Os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário. Os povos nativos resistem a essa investida do branco porque sabem que ele está enganado, e, na maioria das vezes, são tratados como loucos. 


8. Uma montanha é transformada em laminados para fabricação de carros e aparelhos, panelas, fogão, geladeira, que não voltam mais a ser uma montanha. É menos uma montanha no organismo da Terra. Os metais e todos os outros materiais que são utilizados não voltam. A ideia de reciclar é reciclar para outro consumo. Não é uma devolução à natureza. Os oceanos estão exaustos de tanto que tiramos deles, além de jogar lixo. Tem fossas no oceano que estão com montanhas de plástico. Quer dizer, estamos desaparecendo com montanhas naturais na superfície, e criando montanhas artificiais na fossa oceânica.


9. Às vezes eu falo a palavra planeta e às vezes eu falo mundo, e sempre estou falando de coisas diferentes. O planeta é Gaia, esse organismo que nós estamos literalmente comendo. O mundo é esse complexo de imaginação, visões, perspectivas, toda essa produção de ideias que institui uma humanidade. Nós construímos isso. O mundo é uma criação dos humanos. O planeta não. Ele nos criou, e continua nos mantendo por um tempo. Quando a gente ficar insuportável esse maravilhoso planeta tem dispositivos próprios, tem inteligência, tem capacidade para nos dispensar daqui.


10. Quando pensamos em pólis como Jerusalém, Machu Picchu, Istambul ou Tenochtitlán no passado, elas não eram uma doença. Passaram a ser uma doença quando exageramos. Agora, estou fustigando arquitetos e engenheiros perguntando “O que é que vocês estão fazendo diante de tudo isso? Vocês têm uma responsabilidade muito visível. Vocês dão a base científica para levantar essas torres, esses arranhas-céus e essas estruturas pesadíssimas de concreto e ferro.” Estou pegando no pé deles para pensarem em outros modelos de assentamento que não esse de concreto, ferro, cimento, que matam os rios e antecipam a estética do cemitério. Não estou falando que devemos destruir as cidades. Mas devemos transformar as cidades, transformarmos a cidade em um jardim, enchermos ela de coisas vivas.


11. A grande diferença que existe entre o pensamento dos índios e o pensamento dos brancos é que estes acham que o ambiente é recurso natural, como se fosse um almoxarifado em que se tira as coisas. Para o índio, é um lugar que tem de se pisar suavemente, porque está cheio de outras presenças.”


12. Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida.


13. A vida atravessa tudo, atravessa uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. Em vez de ficarmos pensando no organismo da Terra respirando, o que é muito difícil, pensemos na vida atravessando montanhas, galerias, rios, florestas. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma palavra. Assim como existem as palavras “vento”, “fogo”, “água”, as pessoas acham que pode haver a palavra “vida”, mas não. Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição.


14. Quando os índios falam: “A Terra é nossa mãe”, os outros dizem: “Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita!”. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra, quando alguém a fura, machuca ou arranha, desorganiza o nosso mundo.


15. Nós estamos, devagarzinho, desaparecendo com os mundos que nossos ancestrais cultivaram sem todo esse aparato que hoje consideramos indispensável. Os povos que vivem dentro da floresta sentem isso na pele: veem sumir a mata, a abelha, o colibri, as formigas, a flora; veem o ciclo das árvores mudar. Quando alguém sai para caçar tem que andar dias para encontrar uma espécie que antes vivia ali, ao redor da aldeia, compartilhando com os humanos aquele lugar. O mundo ao redor deles está sumindo. Quem vive na cidade não experimenta isso com a mesma intensidade porque tudo parece ter uma existência automática: você estende a mão e tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado, um hospital.



Ailton Krenak é um líder indígena, escritor e palestrante conhecido por sua defesa dos direitos dos povos indígenas e pela luta contra a destruição ambiental e a exploração dos recursos naturais em seu país. Krenak é membro da tribo Krenak e tem sido um defensor ativo da causa indígena por décadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”