sábado, 4 de fevereiro de 2023

EXTRAINDO O BOM DO RUIM - Heraldo Lins

 




EXTRAINDO O BOM DO RUIM


Vou interfonar e xingá-los até não querer mais. Não, pensando bem, é melhor assistir um vídeo para mascarar o "bate-estacas". 

Estou "doido" para achar o sono, mas com este tum e tum e tum e tum... vizinho, não tenho esperança de conseguir. Toda sexta-feira é este ritual: ligo primeiro para a portaria, depois novamente para lá querendo saber o que disseram. Este cara do vigésimo é "chato pra c...", pensa o porteiro ao receber meus telefonemas. Ai dele se pensar isso mesmo. Mas pensar não incrimina ninguém, até porque acho estes vizinhos barulhentos uns filhos daquela mesma. 

Tenho inveja deles, e deve ser por isso que implico com as festinhas que fazem. E o pior foi que aluguei uma garagem para os ditos-cujos, e se eu bater de frente, perco os inquilinos. Percebo que neste momento está tocando bem "baixinho", entretanto misturo inveja, falta de sono e desprezo por funk para incrementar meu ódio. 

O idoso também serve para censurar os mais jovens. Mas não só sou eu. O outro divorciado que mora em cima da “princesa do Sul”, também passa por maus bocados. Ela é lindíssima a ponto de chamar a atenção até das outras mulheres; alta, loira, bem resolvida, olha as pernas! entretanto fuma maconha que dá nojo. Tem dia que ele quase não consegue respirar porque a fumaça sobe deixando-o tossindo sem parar. A mãe dela já me falou que esse negócio de dizer que maconha vicia é mentira, pois ela já faz trinta anos que fuma todo dia e nunca se viciou. Tem momentos que nem ligando o ar condicionado o solteirão se livra do odor de monturo assado.

Um dos meus milhões de problemas é com barulho. A doutora disse que é porque o músculo estapédio não desencadeia o reflexo do fechamento da membrana timpânica antes do som entrar na janela oval, deixando-me "doido varrido". Qualquer barulhinho é amplificado e aí eu “vou pra cima”. 

Semana passada, mesmo assim, senti falta do "moído". Soube que os rapazes estavam em missão externa e então fiquei sem ter com quem me maldizer. Fui para a balada. Chegando lá, reclamei do coquetel, do cantor, até com umas que dançavam perto, eu gesticulei para deixarem de esbarrar na minha mesa. Foi a melhor parte da festa, já que pude exercitar meu estilo ranzinza imutável. Deve ter sido abandonado pela mulher, disse uma sem saber que eu fazia leitura labial.

Tem jeito não! Parei um pouco a concentração para checar, e "vi" que continuam com o bate-bate. Só me resta achar bonito, agradável, confortável, definindo como a noite mais feliz da minha vida! Tenho que ironizar, senão pulo, agora mesmo, daqui de cima. 

Na noite que não tem festa, irrito-me com os motoqueiros passando rasgando. É cada ronco de fazer tremer Babilônia. Dá vontade de jogar pedras, e só ainda não fiz por falta dos seixos. 

E o vento? Ah, esse eu fecho a janela e estiro o dedo. Tudo me perturba, e acho que é porque não consigo me divertir junto ao barulho. Meu raciocínio só funciona no silêncio, e é dele que extraio minha fonte de prazer; é através do silêncio que construo mundos, destruo nações, entro em outros pensamentos oriundos de cabeças por mim imaginadas, e, se tirar isso de mim... Iiih! agora foi que notei! O barulho parou...


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 04.02.2023 - 02h15min



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