sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

CADA SENTENÇA! - Heraldo Lins

 


CADA SENTENÇA!


A borboleta era mais uma beleza a ser admirada naquele jardim repleto de ipês floridos. Por trás daquele ambiente limpo e belo, havia a figura do jardineiro amargando um salário que não o deixava sonhar além do básico. Cavando a terra, naquela manhã de janeiro, ele pensava na vida mesquinha que a profissão lhe presenteara. Pensava na aposentadoria e nas histórias que jamais teria para contar. Igualava-se à minhoca que fuçava a terra naquele momento. Será que ela tem filhos pedindo brinquedos? Não, minhoca não precisa de artefatos para ser feliz. Eu nem sei se minhoca é feliz ou triste, indagava-se. Ele estava feliz por não saber nada dos sentimentos da minhoca. Achava-se superior àquele ser feio que o ajudava com o jardim. Evitava matá-las, porém no trabalho sempre acontecia acidentes envolvendo-as no papel de vítimas. 

Minha vida se resume a viver aqui embaixo da terra, pensava a minhoca, num trabalho gratuito enquanto o jardineiro ganha um salário. Mas ainda bem que existe a terra para me proteger. Lá em cima estão os pássaros que vêm me estraçalhar como se eu fosse batatas fritas. Nasci minhoca e minhoca vou morrer. 

Nasci jardineiro e foi meu pai que me ensinou tudo sobre a terra. Era um homem digno, apaixonado pela germinação, assim como eu. Tentei estudar e ainda acho bonito a pessoa ser "estudada", mas minha cabeça só pensa em plantas. Admiro as minhocas que não precisam pagar prestação de casa nem ficarem penduradas no cartão.

Gostaria de ser jardineiro, pensava a minhoca, só assim me vingaria das andorinhas. Acho tão bonito quando voam com medo dele.

Quem mandou chover? Perguntava-se, irado, correndo para o ponto de ônibus. Naquele dia, estava atrasado por ter perdido tempo devaneando além da conta. 

Sacolejando no ônibus, observava o motorista em ação. Tinha muita vontade de ser condutor de ônibus. Via as mulheres falarem com ele de forma agradável, e isso o fazia ficar com inveja. Da janela, admirava-se com as vitrines. Sentia inveja até daqueles manequins que ficavam o dia todo sendo olhados. Um simples jardineiro não tem plateia, dizia para si. É diferente de um juiz que tem até câmeras filmando-o enquanto trabalha. Meus subalternos são os insetos. Nem os beija-flores prestam-me homenagem. 

Já tinha sido assaltado várias vezes naquele percurso. Todas as vezes, sentia não medo dos criminosos, mas admiração. Achava bonito a pessoa dar ordens e os outros obedecerem. Se pegasse uma arma, iria mandar seu patrão se deitar, mãos na cabeça e tudo mais. Obrigaria a mulher a lhe beijar, fazer sexo com ele e depois se suicidaria. 

Ao adentrar em casa, vê a sua esposa com as pernas estiradas no sofá. Televisão ligada na novela das nove "dando gás" à rotina da indiferença. Se fosse artista de televisão, sua mulher iria vê-lo beijando outras. Ela ficaria com ciúmes e corria para seus pés. Quando chegasse das gravações, ela lhe perguntaria como tinha sido o trabalho; perguntaria o que queria comer; conte as novidades meu bem, diria ela toda derretida. A família seria maior com a efervescência das fantasias sendo realizadas.

Sua "bóia" está em cima do fogão, esquente! diz ela sem desgrudar os olhos da propaganda de produtos que sonha um dia possuir. Se o marido fosse milionário, ela estaria viajando para a Europa; iria deixar o menino na escola acompanhada de motorista e mordomo. Foi assim que aprendeu no programa sobre ricos. Quando voasse no seu jatinho, faria muitas selfies para matar as vizinhas de inveja. 

Veja a torneira da pia. Está amarrada com a borracha e você ainda não consertou, grita ela para o marido que se prepara para dar a primeira mordida no frango requentado que ganhou da patroa. 

Seria bom se pudesse contratar um encanador. Mandaria consertar sem se preocupar com o preço. Na mansão, além de jardineiro, assume todas as funções de um faz tudo. Se pudesse comprar as ferramentas, colocaria letras na camisa com o nome eletricista. Acha bonito esse nome e, já sabe, até ganha melhor do que jardineiro. Encanador ele não quer porque o nome termina em dor. Eletricista parece com os equilibristas que assistia nos circos. Seu pai o levava para ver o palhaço, mas ele ficava mesmo admirado era com o trapezista. Essa admiração acabou-se ao presenciar um quebrar o pescoço. Nunca mais quis ser artista de circo. 

Espera a mulher terminar de assistir. Ela chega na hora do ronco. Deita-se de lado resmungando que ele não lhe dá mais atenção. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 27.01.2023 - 06h21min



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”