NOS QUATRO CANTOS DO MUNDO
O cheiro do amor ainda permanecia quando a porta se abriu. Sofia entrou no escritório pedindo desculpas ao irmão pelo atraso.
─ Não trago notícias boas! Esta semana Esmeralda entrou em coma por duas vezes...
A conversa prosseguia entre irmãos enquanto Larissa retirava-se para monitorar os filhos do amante. Encontrou-os dormindo junto aos brinquedos brincados distribuídos pelo colchão. Certificando-se que estavam bem, deitou-se pensando nos momentos a dois vivenciados há pouco. Aquela intimidade a deixara inebriada. Tentou resistir ao sono, mas o peso suave da satisfação aninhou as pálpebras por dez minutos. Despertou com mau pressentimento.
Do outro lado do corredor, Sofia surgiu gritando desesperada.
Larissa, emocionada, voltou correndo ao escritório. Aproximou-se, e, aos prantos, beijou o semblante pálido de Eutímio sem entender o que havia acontecido.
Às crianças, coube a pena de não brincarem durante o velório. O vento fez isso por elas: soprou os chapéus pretos, dos homens de preto, de semblantes tristes. Um deles, com olhar de vigia e escondendo as palavras, disse para poucos:
─ Com uma amante igual a Larissa, não há coração que resista.
Chegaram os religiosos. Houve bênçãos. A meninada olhava o cortejo sair debaixo de chuva. O mau tempo parecia querer se vingar. Rajadas de vento penalizavam até as carpideiras. Apenas o caixão disfarçava-se de seco debaixo de uma lona improvisada.
No cemitério, a coveira administrava o posicionamento do esquife. Ao tentarem ajustá-lo, perceberam que a cova era menor do que o ataúde. Resolveram, então, enterrar Eutímio em pé. Cuidadosamente, a coveira começou a puxar a terra molhada. Josias tentou assumir esse trabalho com mais vigor, entretanto, ela não renunciou ao seu dever, inclusive antes de terminar o serviço, posicionou um buquê de flores em cima do caixão.
O regresso aconteceu de imediato. Durante longas horas não se falou em outra coisa.
Na manhã seguinte, Sofia foi visitar a cunhada moribunda.
─ Você está melhor, Esmeralda?
─ Não. Gostaria que Eutímio viesse me visitar mais vezes.
Sofia encheu os olhos. Estava ali para dar a notícia, mas ficou relutante por alguns instantes. Esmeralda perguntou pelas crianças.
─ Estão bem. Esta semana vão se apresentar na festinha da escola.
─ Diga a Eutímio para ir com elas. Nessa hora a presença do pai é importante, já que eu não posso comparecer. Convença-o a tirar a barba. Você diz a ele?
Sofia saiu para se recompor. Esmeralda ficou apreensiva esperando-a voltar.
─ Minha querida cunhada. Aconteceu algo grave com Eutímio!
Esmeralda abriu um pouco mais os olhos. Sua aparência de espanto influenciou uma resposta objetiva.
Sofia a fez tomar consciência da sua viuvez.
Esmeralda ergueu a cabeça num gesto violento:
─ Mentira! É sua mentira!
─ Eu também gostaria que fosse, mas é a pura verdade.
Do aspecto tenso e bravio, Esmeralda passou às lágrimas. Era apaixonada por Eutímio. Seu casamento aconteceu aos treze anos com aquele homem de vinte e seis. Depois do quarto aniversário do caçula, o diagnóstico de câncer no pâncreas a retirou do convívio familiar. As crianças, pelo perigo de infecção hospitalar, não mais a visitaram. No seu íntimo sonhava com o privilégio de permanecer em coma.
Sofia se despediu sem conseguir segurar as lágrimas.
Em seu leito, amargando uma solidão constrangedora, Esmeralda foi invadida por uma vontade monstruosa de ficar saudável. Agora, mais do que nunca, seus filhos precisavam dela. Sentia-se calma e vibrante. Sua esperança renasceu.
No mês seguinte, incrivelmente, as dores haviam sumido. Esmeralda sentia-se revigorada. Os exames repetidos mostravam que o câncer não mais existia.
─ Está de alta, disse-lhe o médico residente. Você se curou e a única palavra que define sua cura é: milagre. Não vejo outra!
Quando esmeralda chegou à mansão, os empregados vibraram de alegria. Josias conduziu as malas para a suíte master.
─ Está bonita!
─ Muito mais jovem!
Eufóricos, cada um queria falar algo para agradar à patroa.
A governanta Beatriz providenciou um verdadeiro banquete.
Depois de terminada a refeição, as crianças chegaram da escola. A animação prosseguiu com cada um falando sem parar. Beijos e abraços selaram o reencontro.
No outro dia, logo cedo, Esmeralda perguntou à governanta:
─ Onde está Larissa?
─ Pediu as contas. Rafael foi trabalhar no litoral e ela o acompanhou.
─ Vamos pessoal, já está na hora da escola. Josias apareceu apressando os pequenos. Despediram-se da mãe e se foram.
Esmeralda permaneceu se inteirando das novidades. Seu dia iniciava-se.
O pároco chegou na hora combinada. Cumprimentaram-se e subiram para o escritório no segundo andar. A conversa prosseguia com o padre orientando-a:
─ É preciso, Esmeralda, deixar de se culpar pelo ocorrido. É isso que está lhe causando aflições. Inconscientemente, você passa o dia potencializando problemas e os descarrega em pesadelos durante a noite. No momento que Eutímio perdeu os sentidos, você não estava em sua cabeceira. Essa condição trouxe-lhe a ideia fixa de ter sido enganada pelo destino.
O reverendo, enfaticamente, ressaltou:
─ Prepare-se, Esmeralda. O que vou lhe relatar é tão sério que poderei ser excomungado. Estou sem dormir há vários dias. Ouvi no confessionário algo que lhe diz respeito. Resolvi quebrar o juramento e vou contar-lhe tudo. Acredito que isso tirar-lhe-á desse mar de agonia.
Estou inteiramente ao seu dispor, padre.
─ Eutímio está vivo! Ele ressuscitou.
Esmeralda ficou petrificada durante alguns segundos. Em sua cabeça aquela informação não fazia o menor sentido. O padre levantou-se e trouxe-lhe um copo d’água. Esmeralda não conseguia entender o que acabara de ouvir. Depois de alguns momentos de hesitação, o padre prosseguiu:
─ Ele está vivo, mas precisa de gente para salvá-lo.
─ Como assim? Onde se encontra Eutímio?
O padre levantou-se e, para libertar sua consciência, disse-lhe:
─ Está em poder da coveira.
─ Em poder da coveira?
─ Isso mesmo. Encontra-se algemado na capela do cemitério.
O padre circulava pela sala limpando o suor do rosto sem parar de falar:
─ A coveira contou-me os detalhes: quando veio visitar seu marido morto na noite anterior ao sepultamento, percebeu que Eutímio havia sido vítima de catalepsia. Foi em fração de segundos que planejou tudo: perfurou o caixão e tapou o buraco com vela. A sepultura estreita teve o objetivo de forçar que o respiradouro ficasse para cima. No buquê de flores havia um suporte arredondado na medida certa para se encaixar no buraco tapado com cera. O dispositivo conseguiu manter um excelente nível de oxigenação, salvando Eutímio da morte por asfixia. Quando todos foram embora, desenterrou-o e o algemou para se vingar de um homem que a abandonou para ficar com você.
─ Comigo?
─ Isso mesmo. Antes de você, a princesa da cidade era a atual coveira. Perdeu a formosura e a beleza nas noites de farra. Essa mulher é doente, e, para desencargo de consciência, confiou a mim suas maldades. Estou consciente das punições que virão. Agora é partir para resgatá-lo. O caso requer sigilo para não despertar nela o interesse em assassiná-lo. Por gentileza, acompanhe-me. Preciso sair da mesma forma que entrei. O resto é com você. Aqui está a chave da capela. Leve a polícia. Essa mulher é perigosa. Pode estar a torturá-lo.
Vários anos se passaram. Eutímio, a salvo e totalmente livre da coveira suicida, permanecia o centro das atenções. A festa de Natal estava sendo preparada. Na véspera das comemorações, Eutímio, furtivamente, foi ao encontro de Larissa.
Esmeralda, mais uma vez, teria que amargar a ausência do marido nesses encontros fraternais.
O ar festivo iniciou-se logo cedo. Esperava-se para a ceia, amigos de longas datas, familiares e convidados da hora. As sobremesas ainda estavam sendo preparadas quando os primeiros convidados chegaram.
Esmeralda dirigiu-se para o andar de baixo enxugando as lágrimas que teimavam em denunciar seu estado de espírito. Parou vacilante diante de uma sombra entre os degraus. Era a coveira enforcada. Esmeralda lembrou-se da multidão ao redor daquela que tirou a própria vida para não ser encarcerada.
─ Que queres alma penada?
─ Vim pedir seu perdão, Esmeralda.
─ Meu perdão está concedido já há bastante tempo. Nunca lhe condenei. Mulher traída é passiva de erros maiores do que o seu. A sombra moveu-se desaparecendo. Esmeralda, sem se abalar, continuou em direção aos convidados.
No dia seguinte o padre Idelfonso lamentava-se por ter exagerado no vinho. Deitado em seu quarto, pensou em fazer o sermão sobre a influência do lazer na vida cristã. Enquanto lapidava sua fala para a homilia noturna, alguém bateu à porta. Era a governanta Beatriz chamando-o, em nome da patroa, para o desjejum. Alguns convidados, que dormiram naquela edificação de três andares, permaneciam à mesa quando padre Ildefonso tomou o seu lugar.
─ Está de parabéns, Esmeralda! Fazia tempo que eu não ouvia tão belas canções. Empolguei-me dançando. Conte-me se houve exagero da minha parte.
─ Nada demais padre. Apenas um pouco animado além da conta, mas foi ótimo, deixou todos à vontade. Eu agradeço muito sua participação nesse nosso Natal. Estava eu precisando dessa sua companhia revigorante e animadora. Obrigada por ter vindo.
─ O banho de ervas já está pronto, dona Esmeralda!
─ Ah! Sim. Obrigada.
Quando os convidados se foram, Esmeralda permaneceu relaxando na banheira por um bom tempo. Secou-se em frente ao espelho admirando o cabelo já crescido. Vestiu-se e caminhou para a biblioteca. Relembrava o quanto gostava de ler com Eutímio ao lado. Sonhava, pacientemente, com a volta dessa rotina. Displicente, escolheu um livro de história medieval. Assustou-se com o que leu:
“em muitos locais, em muitos momentos, a fome e a mortalidade continuavam acentuadas. Uma crônica da Região do Mosela afirma, em fins do século VIII, que os homens comiam os excrementos uns dos outros, homens comiam homens, irmãos comiam seus irmãos, as mães comiam seus filhos”.
Esmeralda largou o livro com ânsia de vômito. A técnica de enfermagem trouxe comprimido contra enjoo que a fez dormir um pouco. Depois do almoço, já restabelecida, levantou-se da cama e caminhou para a sala de estar. Encontrou a governanta consultando o smartphone.
─ Alguma novidade, Beatriz?
─ O tiroteio com Rafael viralizou.
Após ouvir os detalhes, Esmeralda foi aproveitar a brisa da tarde no alpendre.
Beatriz, relaxada no sofá e admirando a fotografia de Rafael, sentiu um pulsar arrepiante no vértice das pernas. Lembrou-se o quanto gostava de sair com ele para as margens do lago. Agora, só restavam lembranças daquelas noites enluaradas. Nesse momento escutou um eco em seu pensamento: você está com falta de homem! O calor repentino a sacudiu. Levantou-se e foi compartilhar, junto à patroa, a paisagem campestre.
Eutímio chegou para tratar de assuntos administrativos da fazenda. Beijou a esposa, abraçou os filhos, mas não esperou pelo jantar. Prometeu voltar mais vezes. Sua empresa, exportadora de pedras preciosas, roubava-lhe o tempo.
─ Está precisando de algo, dona Esmeralda? ─ Perguntou Beatriz.
─ Vou subir e deitar-me um pouco. Pode me acompanhar?
─ Sim, claro. Ao chegar ao início da escada, Esmeralda desviou os olhos para a governanta. Beatriz, percebendo a indisposição da patroa, sugeriu:
─ É melhor transferir a senhora para um dos quartos aqui de baixo. Essa escalada não está lhe fazendo bem.
─ Boa ideia! Vamos providenciar a mudança agora mesmo. Fico aqui enquanto você transfere minhas coisas.
Algumas da cozinha vieram ajudar. Concluída a mudança, Esmeralda levantou-se e dirigiu-se à janela do seu novo aconchego. Quando estava para fechar a cortina, encantou-se com o jardim bem cuidado e pouco admirado por ela nas últimas semanas.
─ Veja estas rosas, Beatriz. Que coisa mais linda!
Ficaram em silêncio contemplando os últimos raios de sol no jardim sombreado.
─ Posso pentear o seu cabelo? Perguntou Beatriz deslizando a mão.
─ Pode sim!
─ Sente-se, dona Esmeralda.
Beatriz sempre se encantou com aqueles cabelos sedosos de fibras finas e ondulados. Sentia-se bem em acompanhar, com a outra mão, o deslizar da escova.
Esmeralda deixou-se ficar no agrado e tocou-lhe com uma observação:
─ Você tem o corpo lindo, Beatriz. Veja que maravilhosas curvas.
Beatriz arrepiou-se. Aquelas mãos macias acariciando sua cintura a fez desejar abraçar Esmeralda. Encontrava-se carente e se estranhando: jamais passou pela cabeça sentir atração por uma mulher. Penteando-a de forma carinhosa, como tantas vezes fizera, desta vez percebia que havia algo mais. Esmeralda, com voz sussurrante, continuava elogiando-a.
A penumbra conivente testemunhava aquele encontro na magia da intimidade. A escova tocava o couro cabeludo e descia suavemente pelos cachos dourados. Esmeralda, hipnotizada, sentia a respiração de Beatriz em suas mãos. Continuava como se um ímã prendesse seu olhar naquele corpo sarado. Beatriz, sentindo aflorar seus desejos, pensou em descer sua boca ao encontro da outra. Nem precisou. Esmeralda a puxou para si. Beijaram-se apaixonadamente durante o vazio das horas. Aquela explosão de paixão adormecida veio em erupções continuadas. As duas se realizaram por completo a perder de vista.
No dia seguinte Esmeralda acordou sozinha. As cortinas, empurradas pelo vento, fizeram-lhe acordar mais cedo. Sentiu-se feliz ao inspirar o cheiro da mudança em seu corpo bronzeado. Comparou a noite passada com a vida íntima de antes. Desconhecia esse seu lado. Lembrou-se que na adolescência sentira algo pela amiga de escola. Coisa passageira. Treinavam beijos uma na outra. Foi nessa época que conheceu o caminho florido do orgasmo. Agora, precisava esgotar suas dúvidas. Definir-se! Fêmea sendo amada por outra fêmea? Estranhou-se, mesmo assim, sentia-se mais mulher. Libertava-se da dependência de um homem. Não se condenou por isso. Estava contemplando as transformações psíquicas de uma mãe lésbica. Sorriu das próprias vontades díspares. Não planejara beijar Beatriz, mas aconteceu e gostou. Decidiu acalmar-se.
A vida seguia dentro das normalidades naquela planície fértil. Eutímio, de quando em quando, aparecia para o jantar em família e despedia-se ao amanhecer. Sumia por uma semana e retornava alegre como sempre. Em uma das visitas, Esmeralda convidou Beatriz para uma noite a três. Foi a partir de então que Eutímio sentiu-se motivado a incluir Larissa nas brincadeiras do quarto.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN
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