DECEPCIONEI LEGAL
Já é a décima vez que apago o que digo. Enganchou a porta por onde saem os assuntos e tive que chamar o marceneiro para desbloqueá-la. Ele chegou com um martelo, depois pegou uma marreta, e terminou metendo fogo para ver se desobstruía a passagem. Já tentei lavar a louça para dizer que o detergente se acabou e tive que sair para comprar, bem distante. Na passagem do caixa o cartão “negativou” e tive que largar tudo lá, até a vergonha, que ainda restava, dividi com a fila que me olhava achando que eu era estelionatário.
Voltei sem o detergente e parei por aqui para falar os pormenores, mas ainda não me sinto à vontade para dizer o que houve. Os pratos continuam sujos. São apenas dois, quatro colheres e um copo, mesmo assim fico a contemplá-los achando que eles não querem ser lavados, senão me pediriam. Tem água, sabão, detergente e coragem estão faltando.
Não escuto nenhum barulho que sirva de pretexto para sair de perto da pia. A mulher que lava, engoma, varre a casa, tira o lixo e o meu juízo, está visitando o pai doente. Olho as mensagens e parece que fui esquecido por todos. Já enjoei de ver as jovens balançando os glúteos atrás de seguidores. É a mesma coisa: braços se balançam, massageiam a barriga, vira o bate bate para que possamos ver as curvas fechadas abrindo-se em ritmo acelerado, e assim vai. Fiquei cansado de tanto apertar teclas no “seguir” que estou tentando uma atividade motora para ver se desenvolvo meu lado troglodita.
O motivo de querer fazer algo longe do smartphone, é que escutei alguém falar que a geração atual está perdendo a inteligência. Por isso é que a dependência virtual está me deixando tonto de tanto ver as coisas acontecendo lá dentro e eu aqui fora sendo abandonado. Ouvi falar que não devo entrar no “metaverso” porque corro o risco de me viciar e não querer mais ficar vivendo no mundo real.
Vou encarar o sabão em barra. O pano de prato fica estendido à minha frente, doido para ser usado. Se alguém disser que a louça ficou fedendo, que venha lavar. Aproximo o pano de prato nas imediações das células olfativas e sinto que está precisando ser também lavado. Parece que hoje tudo está precisando ser. Jogo o pano na máquina e tiro outro. Lembro-me que foram comprados a uma senhora na beira do sinal. Como será que ela está com sua filha cancerosa? Foi o que me disse para me convencer a comprá-los.
Cerro os olhos, dou ‘luz baixa” para ver se com esse suposto relaxamento consigo algo digno de leitura. O próprio medo de cair no marasmo trava tudo. Nem quero mais falar de caminhada, copa do mundo, ou comprimidos, mas não tem jeito. O momento está chegando e não tenho nada para apresentar, apenas o vento entrando aqui em casa sem que eu o veja, só percebendo através do “pra lá e pra cá” das roupas no varal.
Antigamente existia o deus do vento que fazia as roupas mudarem de posição no decorrer do tempo, mas infelizmente a inteligência descobriu que de deus esse vento não tem nada. Fiquei órfão dessa crença porque os cientistas provaram ser outra coisa. No tempo em que eu acreditava que quem balançava meus cabelos era um fantasma, eu tinha mais medo e me contentava com tudo. Era mais feliz, ou mais medroso, não sei bem. Hoje sei até que quando amanhece é apenas o mesmo sol voltando. Antigamente eu achava que aquele que se punha morria e era criado outro que aparecia pela manhã. Não queria aprender nada disso, entretanto a troca de informações me convenceu que é assim.
Após enxugar a louça, percebo que tenho que guardá-la. Olhando para o rastro do pensamento, percebo que ninguém mais, nem eu, suportamos tanta louça nesse escrito. Os gols da seleção, que deveriam ser o tema de hoje, foi esquecido só porque não admiro muito olhar um sanatório onde os doidos correm atrás de uma bola enquanto os outros gritam: GOOOOOOOOOooooooool...!
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 25.11.2022 — 14h45min
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