segunda-feira, 24 de outubro de 2022

MESMO NA TRAGÉDIA - Heraldo Lins

 


MESMO NA TRAGÉDIA


Passeando no shopping, vi uma porção de pessoas trocando figurinhas da copa do mundo. Essa é uma das bolhas que sobrevive ao passar dos tempos. Lembro-me que também colecionei, mas meus pais nunca se envolveram com o nosso projeto, sim, porque éramos dois lá em casa e tínhamos um só álbum. Todo dinheiro que pegávamos investíamos, e hoje é que percebo que só serve para transferir riquezas para os que já têm sobrando. Vendíamos castanhas juntadas pelo consumo de casa; vagem de algaroba apanhada na beira da estrada; semente de carrapateira e até água de ganho botávamos nas casas para poder comprar mais e mais figurinhas. Naquela época eu não tinha noção que estava sendo manipulado pela mídia e só hoje soube que há uma rara figurinha que vale sete mil reais, e é ela que continua alienando pais e filhos como fazia “nas antigas.”

Esse passeio aconteceu no mesmo dia em que um ex-deputado jogou granada nos policiais federais. Logo em seguida uma figura mandou o exército guardar a casa do indivíduo para que ele não fosse preso. Isso tudo acontecendo enquanto os álbuns, inocentemente, estão sendo completados. Naquela época, eu também não tinha noção que o DOI CODI fazia vítimas enquanto nós nos divertíamos com Pelé e Garrincha na mais santa ingenuidade.

No momento em que presencio as cenas que lembram minhas experiências infantis, assisto no celular uma figura dizendo que é da Bahia e que quem não votar no seu candidato deve ser morto, inclusive, crianças que sejam simpatizantes. Matar é a voz de comando que aquele desesperado defende, e ainda por cima dizendo que sente vergonha de ser baiano porque lá a maioria vota em favor da democracia. Lá no ambiente das figurinhas, não ouvi ninguém se pronunciar sobre esse o assunto. É como se houvesse um hiato social entorpecido pelas fotografias.

Nesse dia agitado, fui visitar meu pai no hospital. Falo das pesquisas de intenção de votos e ele apenas permanece se esforçando para respirar e se alimentar através de finos tubos fixos em seu nariz. Digo-lhe que agite as mãos amaradas para dizer que está entendendo, o que não acontece. Seus olhos estão esbranquiçados pela anemia aguda e eu, para lhe dar ânimo, pergunto-lhe em quem vai votar. Ele, com voz embargada...  Seu maior sacrifício está sendo em se manter vivo. 

Minha mãe fica arrasada ao ver meu pai sem forças para responder aos estímulos. Depois de vários chamados, ele nem abre os olhos. Ela, que me dava dinheiro para comprar figurinhas, passa pelos sentados no chão sem entender direito do que se trata. Nem votar, quer. Está cansada depois de várias sessões de quimioterapia, e me vejo pensado sobre o alguém querendo matar enquanto outros clamam por uma migalha de oxigênio para sobreviver.  

Para muitos, achar o ar é tão difícil como encontrar a figurinha valiosa, no entanto procuro me concentrar naquela figura que irá fortificar o álbum da democracia no próximo domingo.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24.10.2022 – 16h12min



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