segunda-feira, 8 de agosto de 2022

UM DIA CHEGAREMOS LÁ! - Heraldo Lins

 


UM DIA CHEGAREMOS LÁ!


Sua profissão é conversar, e, mesmo que não queira, precisa se manter no emprego. Depara-se com um velho dizendo que hoje não aceitará nem um dedo de prosa, pois desconfia que está sendo manipulado pelo desejo de saber as novidades. Vá procurar plateia em outro lugar, disse o velho. 

Ele saiu seguindo a intuição e, mais adiante, depara-se com um lava a jato que aspira a alma das pessoas. Entra no escritório e quer saber como é o processo. A atendente diz que escanea todas as más lembranças e o cliente escolhe quais irá deletar. Ele contrata o serviço e a primeira etapa é realizada. Depois de ver armazenadas suas péssimas recordações, senta-se e começa a escolhê-las. Para facilitar o trabalho, a simpática mulher diz que as experiências em vermelho são as que provocaram e provocam mal-estares, e se ele quiser apagá-las basta selecioná-las e aperta enter. Assim é feito. 

Sentindo-se mais leve, sai dali com o intuito de preencher o vazio deixado pelas deletadas lembranças. Passa em frente a uma garagem onde o proprietário, pressionado por sua esposa, está querendo se ver livre das reminiscências de caminhoneiro. Interessa-se e compra algumas onde viaja ao lado de caronas seminuas e também adquiri as que ele se divertiu com as lindas frentistas na boleia do caminhão. 

Anda mais um pouco e percebe que naquela rua está havendo uma verdadeira feira de lembranças. Procura por bons produtos, mas cada pessoa está querendo, igual a ele no lava a jato, se ver livre das que o perturbam. Para não ficar se sentindo um ser desprovido de cultura, resolve avaliá-las.

Conversa com um homem ranzinza que lhe oferece dinheiro para que leve as suas embora. Tem medo de se tornar também mal-humorado, mesmo assim, aceita-as visando remodelá-las quando chegar em casa. 

Logo em seguida, uma jovem oferece umas de quando era estuprada. Ele, por caridade, as toma para si, recebendo um sorriso de bônus que faz desaparecer nela uma ruga precoce.

Muitos expositores o convidam porque percebem que ele é um bom negociante. Entra na casa de uma viúva. Ela fala que depois que o marido foi assassinado nem consegue dormir recordando a arma em sua cabeça, e, mesmo tomando remédios, os pesadelos continuam. Propõe entregar-lhe as registradas nos últimos três anos. Apertam-se as mãos e logo a transferência se efetua. 

Uma adúltera o chama. Quer lhe passar os momentos em que foi jogada na lama por quem a usava. Sabe que há um desejo quase incontrolável em seduzir, e naquele momento ele sente-se atraído por aquela infalível receita do amor carnal. A sugestão é que ela transfira também a técnica da sedução, ouvindo-a dizer que não, que jamais irá se desfazer da única coisa que sabe fazer bem. Ele ainda argumenta que é preciso que ela largue esse vício, senão daqui a um mês será novamente abandonada pelos que seduzirá. O problema não está em ser abandonada, diz ele, mas em permanecer sendo o que sempre foi. Ela gritou da janela quebrada por pedradas que se ele insistisse chamaria a polícia, e, com certeza, acreditariam em qualquer história que contasse porque sabia manipular as pessoas. Tudo bem, respondeu ele seguindo adiante. 

Ao dar alguns passos, encontrou-se com um afrodescendente. Leve embora estas minhas chicotadas, disse o cultuador dos orixás. Mas isso é estranho! Você é jovem e nunca foi escravo. Essas são as dos meus antepassados que as trago por juramento familiar. 

Ele concordou em recebê-las e, além dessas, ficou com as das vítimas dos reis, monarcas, ditadores, enfim, acolheu as más lembranças que afligiam humanos de todas as idades, credos, cores, etc., e ao sentir-se esperançoso que o mal sobre a terra estava prestes a ser extinto, foi preso e deixado morrer de braços abertos. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 07.08.2022 — 19:35



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