domingo, 28 de agosto de 2022

RISCO DE SALTO - Heraldo Lins

 









RISCO DE SALTO 


Abandona a história do outro e vai construir a sua do alto do prédio onde vê o mar, as dunas, o trânsito, e lhe veio a percepção o quanto há de escravos indo para o trabalho. São escravos do trânsito, do luxo, do ponto eletrônico... daqui a pouco estarão mortos e outros assumiriam seus lugares. 

Dentro de um veículo uma jovem está dirigindo para o seu primeiro dia de escravidão. Estudou muito para ser escrava, pois está na moda trabalhar. Olha para o caminhão à frente onde outros estão correndo para pegar sacos de lixo de olho nas próximas tarefas expostas nas calçadas.

Pega o celular para ver o que tem por perto das suas digitais. O barulho da máquina de lavar o desperta dizendo que ele nasceu com o único propósito: o de sujar.

Vê ao longe uma escola. Um professor assumindo seu ar imperativo sobre as crianças que também logo serão substituídos, cada um com um tempo de validade chegando ao limite. Quanto é rápida essa vidinha, pensou que se pular será apenas mais um a fazer os veículos desviarem-se enquanto não chegar alguém de farda para recolhê-lo.  

Uma amiga veio dizer-lhe que está se sentindo mal com o casamento que leva. No outro dia pensou em telefonar-lhe, mas ligar para dizer que sonhara com ela chorando, não ia pegar bem. Não falou para ninguém porque acredita que se a pessoa contar um sonho ele não se realiza, deixe ela chorar até secar as lágrimas.

Correu para o lugar de pensar. Um sofá em uma sala a esperá-lo sem nada mais exigir. Esse trabalho de pensar, pensar sem chegar a lugar nenhum toma-lhe o tempo. Não consegue fazer outra coisa a não ser ficar entretido com as próprias dúvidas. 

Às vezes pensa em fazer algo e depois pensa em desmanchar. Por isso tem que ter tempo disponível para pensar no que pensou. O que não pode é ficar parado vendo a lâmpada apagada sobre sua cabeça. O mundo prático invadindo seu mundo espiritual, mas precisa dessa conexão às claras com a lâmpada funcionando. Por que tem que se preocupar com coisas banais que se tornaram tão importante para a manutenção de um lar?     

Vai caminhando consciente que está andando em círculo, afinal de contas, tudo gira. Cada um com seu nível de loucura sem saber dizer o que encontrou na viagem que fez, recentemente, para o infinito. Nem pode mais se preocupar com isso. Quase todos os dias é esse lenga-lenga de mal-estares. O mundo está repleto deles, alguns disfarçados de sorrisos, de festas, de promoções, de parabéns pra você.  

A mulher chega em casa com o carrinho de feira lhe chamando para a realidade, dizendo-lhe que aborte o voo de Wingsuit, pois já conseguiu alimentos necessários para prolongamento do conforto estomacal até a próxima crise existencial.      


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 27.08.2022 — 19:11



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