sexta-feira, 8 de julho de 2022

NAS ENTRELINHAS DO PRÓPRIO SER - Heraldo Lins










 NAS ENTRELINHAS DO PRÓPRIO SER


Levantou-se para o café da manhã, mas antes assistiu um comentário sobre literatura. O livro resenhado fazia parte do seu repertório de leituras, por isso sua atenção voltou-se mais para a desenvoltura da expositora do que para os detalhes da obra ali exposta. 

Nesse intervalo, veio-lhe a ideia de que todos precisam de uma cápsula para dormir, seja um quarto, uma caixa ou um lençol. É a lembrança da posição fetal exigida pelo corpo acostumado numa placenta. 

Lembrou-se dos taxistas que escolhem a floresta para passarem a noite dentro dos próprios táxis, e também dos que dormem na fila de espera, e, quando acordam, percebem que seus colegas o ultrapassaram. 

Ficou centrado em três pensamentos, ou melhor, quatro. Naquela manhã fria de julho em que tudo estava acontecendo ao mesmo tempo, queria se lembrar o que havia na geladeira para o primeiro desjejum. Poderia concentrar-se em um, depois no outro, até conseguir cumprir com as cinco atividades que se propunha, sim, agora eram cinco. Sua mente inquieta sempre puxava lembranças e mais lembranças que o fazia ir junto para todos os compromissos sem de fato resolvê-los. 

Para ele, bastava pensar que já era o bastante para chegar à solução de qualquer um deles. O que escolheria para servir como primeiro alimento? insistia sem tentar se lembrar. O trabalho juramentado e distante da hora, já lhe tirara o sossego. Daqui a pouco irá almoçar, trabalhar, e, de volta, olhar para a noite e dizer até amanhã. 

A amante ainda está a dormir no quarto, ambos, por ele abandonados há pouco. Ela precisa daquele espaço organizado para se organizar como mulher insegura quanto ao homem que a possui. Nem a convida para tomar café juntos, mesmo assim, precisa averiguar qual tipo de alimento lhe provoca maior salivação. 

A jovem que fazia a resenha do livro tinha um cacoete de passar o cabelo negro e comprido por trás da orelha, e isso o fez fechar os olhos e imaginar que se ela fosse um robô nada disso estava acontecendo. Não suporta repetições, e aquilo lhe tirava a paciência, por isso a decisão de fechar os olhos. 

Era cedo da manhã, mas só o fato de estar servidor público o deixava inquieto. Cumprir horário, ser cobrado sem poder cobrar o fazia refém de si mesmo. Se pudesse mandava tudo pelos ares e ficava agarrado aos livros consagrados. 

Não queria aplaudir o presente. Para ele, só tinha valor o que passou, o que servia para entretê-lo como sendo algo que valeu o esforço. O presente é comer e ser comido pelo tempo, sem dúvida, um momento desgastante que atinge tudo e todos, e ele está nesse meio, insatisfeito, mas está. 

Alimentou-se e nem se deu conta que encheu o estômago de tão apressado que foi. A sensação de saciedade o fez confirmar que sim, alimentou-se. 

No início, até que se sentiu atraído pela jovem expositora no vídeo, mas depois do cacoete, já não a queria como deusa. Fechou portas e janelas para se perceber em toda a sua plenitude. Ali estava ele com ele mesmo, sendo o solitário que sempre lutara para ser. 

Nem se lembra mais dos cinco compromissos assumidos. Basta fechar portas e janelas que eles deixam de existir. Só trabalha quem não tem o que fazer, diz para si, acrescentando que é um vagabundo por precisar do trabalho como tábua de salvação para o seu corpo que só consome. Mas por que não dá cabo nesse entulho? A dor é a fronteira das decisões. É por ela e através dela que se segue acomodado sem querer experimentá-la na sua profundidade final. 

Nada mais há para fazer nem dizer, e sendo assim, uma voz lhe grita que há o conformismo como última instância. É assim mesmo! escuta a voz vindo das bandas do se. Se houvesse outras soluções elas seriam utilizadas, isso ressoa mandando-o criar alternativas lógicas para que seu eu possa se movimentar dentro delas como um tigre precisa de várias hectares de mata virgem para sobreviver. Ele precisa desse espaço mental enlarguecido para escapar das paranoias causadas pelo estreitamento das ideias. 

Abre a porta de chegada e se depara com a realidade, e, dentro dessa realidade, situa-se a noite com sua indiscutível escuridão, restando-lhe dormir novamente em braços alugados.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 07.07.2022 - 21:10



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