MILHARES POR DIA
Vejo uma cadeira na sua eterna espera de acolher um "sentante." Suas quatro pernas só servem para dar apoio a duas. Já falei sobre ela em outros momentos, e fico a pensar por que a cadeira me atrai tanto. Deve ser pelo seu silêncio. Quem a utiliza, muitas vezes sobe para trocar lâmpadas onde deveria ser a vez da escada. Ela não reclama quando isso acontece porque tem consciência de que a escada precisa da parede para desabrochar na sua essência, e muitas vezes isso não é possível. Como são muito amigas, “deixa a vida te levar” sem maiores questionamentos.
A parede, mais paralítica do que as duas, permanece plantada acolhendo a escada quando essa resolve trabalhar. Soube-se, recentemente, que a parede desistiu de pedir o divórcio ao seu marido chão, mesmo sabendo que ele tem várias outras paredes fixas. Nesse mundo dos inanimados, nunca houve ciúmes do chão ao presenciar a escada e a parede se esfregando, aliás, ciúmes vêm de um mundo distante e alheio a eles. Já ouviram dizer que há uns bichos que sentem isso, mas eles, não.
Já é de domínio público que o chão sonha em ser parede, inclusive, sempre que pode, empresta seus elementos para se transformarem em parede, tais qual areia, barro e pedra. A vida de chão é chata e humilhante, tanto quanto a da cadeira e da escada. A parede, nem tanto, pois se aformoseia com quadros, cortina e maquiagem de cores diferentes. A tinta, que serve para embelezá-la, morre quando se joga nela, por isso dizemos que a cor é a filha da tinta suicida. Esse suicídio acontece quando a cor fica com desgosto de estar longe da lata. Há toda uma cadeia alimentando essa troca de experiências, e a lata, por sua vez, nada mais é do que a placenta da tinta esperando um pincel.
Muitas vezes, quando a tinta não abraça a parede com uma paixão avassaladora, a parede a despreza expulsando-a em forma de torrões de cascas inválidas. Nesse mundo cão dos objetos, a invalidez jamais será amparada por um plano de saúde. Nesse corre corre consumista, uma peça é substituída por outra sem a menor cerimônia, e com a tinta não é diferente.
Mesmo que haja uma maior durabilidade, ninguém se importa com uma lasca de parede mal-amada. Quando ela chega ao cemitério das lascas, as outras almas descartadas correm para perto tentando saber o que aconteceu com quem havia sido elogiada pelas suas demãos tão fechadas, e a reunião tem início: primeiro fala o isopor, todo sujo e maltrapilho, contando que servia para encaixar diamantes, hoje, encontra-se igual a um torrão de parede quebradiça; a garrafa pet relembra o tempo que passou no caixa do supermercado pronto para ter seu conteúdo consumido, ah! que maravilha foi participar da passagem de ano das crianças!
Por último, chegando atrasada e arrastando-se, encontramos um pedaço de carne fugindo dos tapurus. Naquele momento, todos os moradores do lixão param para ouvir a história daquela heroina injustiçada. A maioria conhece aquele tipo de carne que conta sempre o mesmo final, contudo não se cansam de ouvi-la.
A carne malcheirosa diz que teve sua origem no mais requintado lugar, onde existiam cadeiras, escadas e paredes pintadas com brilho dourado. Depois, foi descartada e, como todos sabem, atualmente encontra-se fugindo dos tapurus. Quiseram saber qual o nome que recebeu ao ser criado, e ela, com lágrimas saindo dos buracos onde antes eram olhos, disse: recebi o nome de feto abortado.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 08.07.2022 - 20:20
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