segunda-feira, 4 de julho de 2022

FÉRIAS DO SOL - Heraldo Lins

 


FÉRIAS DO SOL


Alguém roubou o destino e fez o carro dela parar no meio de uma lagoa no asfalto. O canteiro, mascarado pelo excesso de pingos caídos, levantou a frente do veículo amordaçando sua capacidade de seguir o fluxo, entalando-o na garganta do túnel e lá ficou. 

No interior da cápsula, a mulher poderia ter se desesperado caso estivesse cercada por dinossauros quebrando a lataria para almoçá-la. Seu pavor não chegava a tanto, mesmo assim, o veículo se balançava todo com as ondas proporcionadas por ônibus "velozes e furiosos" que passavam indiferentes ao seu problema. 

O celular não completava a ligação e a chuva despejava-se vingando-se do tempo de estiagem, anteriormente, prolongado. A motorista sentiu seus sapatos novos serem acariciados pelo molhado furtivo entrando pelas brechas das portas, e o coração disparado deixava-a sem capacidade de raciocinar. Ela sabia que isso era proveniente do instinto de preservação querendo fazer valer a ideia de se afastar dali o mais rápido possível, contudo, não iria abandonar seu patrimônio no meio daquele aguaceiro, isso ela tinha certeza. 

Finalmente, alguém atende do outro lado da cidade. Era o mecânico de confiança. Alô!... Chego já aí! Quanto tempo vale um chego já aí?... pensou ela ao sentir um filete de esperança vindo em sua direção. 

Ligava para o marido, mas não era atendida. O que ele iria dizer? Cangueira! seria o mais suave adjetivo que ouviria naquele domingo. Ele ainda deve estar dormindo, e foi bom até não saber que estou entregue à própria sorte no meio desse temporal porque senão viria correndo a pé pelos seis quilômetros que nos separa. 

O pior não é o que está acontecendo, mas as lembranças que teimarão em vir por prolongados seis meses. Ela era assim. Não conseguia sair do caracol de lembranças quando algo terrível acontecia. É preciso passar por tudo isso para se adquirir experiência? perguntava-se enquanto ligava para o seguro. O reboque chegará aí por volta de duas horas a contar de agora, disse a atendente. Como assim? Pelo serviço de meteorologia, está difícil acessar o local que a senhora está. Fora chamada de senhora. Quanta honra, pensava ao se desligar. Agora tem o título de senhora. Mesmo no desespero seu ego vaidoso sobrepujou-se. Sentia-se importante no meio daquela enxurrada. Morreria importante, pena que só agora soubesse disso. 

Toc toc, bateram no vidro lateral. Impossível ser um pedinte dentro daquele alagadiço, pensou ela odiando seu pensamento. Não gostava de mendigos querendo chamar sua atenção. Olhou com raiva em direção ao toc toc. Não, não era mendigo. Era o mecânico que ela adorou ver. Baixou o vidro. Trouxe a corda, e a senhora mantenha a calma, disse o mecânico. 

Hoje já é a segunda vez que é chamada de senhora. O ego nem se manifestou, apenas lhe veio a preocupação de estar ficando velha e não ter percebido. Se sua juventude saltasse aos olhos iriam lhe chamar de você, menina, querida ou algo parecido. Será que esse sinistro aconteceu para lhe mostrar a realidade de ser uma senhora? 

Vire o volante assim quando eu começar a puxar, disse o mecânico. Ela que sempre se acostumou em dar ordens, estava recebendo-as de um mecânico. Sentiu-se ferida em seu orgulho de madame de tal. Pena que a chuva não faz distinção de classe social molhando a todos, indiscriminadamente, pensou ela enquanto olhava pelo retrovisor embaçado. 

A mulher do mecânico veio junto e era quem estava acelerando no outro veículo. Acho que ela nunca fez uma plástica, pensou a madame que separa a humanidade em quem fez ou não procedimento estético. 

Colocado em cima do guincho, o veículo foi levado para a oficina e ela de volta à sua residência pela mulher do mecânico. No trajeto, ela perguntou sobre procedimentos estéticos, e a mulher disse que toda semana fazia vários em seus pacientes. Era uma médica casada com um mecânico. Ela ficou com inveja e disse para si: só mesmo num domingo chuvoso que isso é permitido de se ouvir. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 04.07.2022 - 11:42



2 comentários:

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”