quinta-feira, 12 de maio de 2022

PECADO PERFEITO - Heraldo Lins



PECADO PERFEITO


Era festa da padroeira na cidade vizinha, e, como eu vivia sempre ”enfurnado comendo páginas”, resolvi conhecer as damas da noite longe de olhos “censurantes”. Havendo ajustado com o dono da caminhonete, preferi me arrumar cedo, e aí se deu nosso encontro. 

A pousada em que eu era mensalista pertencia a dona Edileuza. Mariza, sua filha, mantinha-se discreta tomando conta da administração, e eu só conseguia um pouco da sua atenção a cada final de mês no repasse da verba. 

Contava eu treze anos de pura inocência, conhecendo as trivialidades da vida através das narrativas orais dos mais velhos da classe. Meus pais concederam a Edileuza os direitos e deveres para comigo. Não haveria problema em eu ir sozinho. O dono do veículo era de confiança, e levaria, sem muita distinção, outros religiosos para a novena. 

Mariza ficara viúva há dois anos, antes dos trinta, quando seu marido estava se disfarçando de amigo íntimo na casa do coronel. Ela não se abalou. Há muito que sabia das “escapulidas” do marido. No início dessa enganosa amizade, indignou-se. Pensou até em divórcio, coisa nova para a época, mas, aconselhada pela mãe, achou por bem aceitar o furtivo namorador.  

Da viúva, nada poderia ser comentado fora do âmbito familiar, a não ser ler a liturgia dominical. Uma santa. Vais à novena? Vou sim! Estranhei que ela chegasse assim tão descontraída como se de mim fosse íntimo. Sempre ficava, com seu vestido enlutado, longe dos poucos hóspedes que por lá se abancavam, sendo eu, mesmo residente,  incluído no caderno da sua indiferença. 

Sentou-se com a costumeira discrição, porém bem pertinho. Ouvi bater a última hora do Angelus sem me benzer. Vais mesmo à novena? repetiu. Claro, respondi-lhe. Alguma dúvida? Olhei desconfiado me perguntando onde ela queria chegar. 

Edileuza surgiu vindo pelo corredor, entretanto pouco interesse despertou ao nos ver conversando. Deitei a cabeça querendo que aquela imagem desaparecesse, o que de fato aconteceu portão afora. Aliviado, dei graças a Deus, pois havia sonhado com aquele encontro com sua filha desde que chegara da roça, há sete meses. Ela também não se interessou pela interferência da mãe silenciosa. Ao meu lado, dava para sentir seu peito, em cadência suave, apertar os botões da blusa. 

Nenhuma dúvida, perguntei por perguntar, mas cuidado, porque corre o boato que  quase todos os rapazes que dizem ir para a novena, vão, na realidade, conhecer a casa do amor. Duvidei do que estava ouvindo, contudo, satisfeito por ela estar me confidenciando um assunto tão íntimo, permaneci fitando-a. 

Ela desamarrou o cabelo que trazia preso com os costumeiros grampos. Nunca havia visto cabelos tão lisos, negros e brilhantes. Quase na cintura chegavam suas pontas. O perfume tomou conta da sala. Nem sei onde fica essa casa do amor que você fala. Por trás da igreja, naquela ruazinha estreita e escura. Dizem até que há mulheres disfarçadas que não querem ser identificadas pelos clientes. 

Essa observação já era do meu conhecimento, porém continuei fingindo. Eu queria que aquele momento se eternizasse. Não me diga que não sabia, perguntou-me molhando os lábios junto com a última sílaba. Alguém está buzinando. Deve ser sua condução. Levantei-me atordoado. Seu guarda-chuva. Ah! Tá! Já ia me esquecendo. Obrigado! Voltei-me para pegá-lo. Ao entregar-me, seus dedos macios deixaram boas lembranças. 

Os solavancos não me fizeram perder a beleza daquele rosto bem cuidado, daquele olhar abaixo do meu, tendo como “foco” uma boca à procura de outra. Durante toda a viagem não esqueci Mariza.  O que me fez ter esperança foi seu aceno na porta da pousada quando o veículo saía. Olhei em volta. Será que há alguém mais por quem está apaixonada? Percebi que a lotação era composta por pessoas idosas, cada um com seu par. O motorista não era. Só restava eu mesmo. Talvez estivesse entediada, e apenas me usou. Ah! minha Julieta, suspirei no papel de Romeu. 

O carro parou em frente à igreja. Saltei com o pequeno guarda-chuva aberto. Chuva fina, pouca gente no pátio, momento ideal para escapulir com Ulisses para o local combinado. Não tenha medo, dizia ele. O negócio é não correr logo para os braços da mulherada. Mais tarde chegam as mais bonitas, inclusive, só daqui a meia hora é que a mascarada está chegando. 

Essa misteriosa mulher é avisada quais clientes estão a esperá-la. A mando de Ulisses, coloquei meu nome na lista. Dona Valdeci mantém o segredo dessas com dupla identidade, é assim que funciona. Há um sorteio concorridíssimo, e nem com dinheiro a mais se consegue furar a fila. Vai depender da escolha dela.    

Ulisses já era “maceteado” e exercia a função de despachante dos meninos virgens que o procuravam para adentrar no mundo dos adultos. Eu estava escalado, inclusive vinha economizando dinheiro do lanche para pagá-lo quando chegasse a hora. Ali estava eu protegido por alguém mais velho e conhecedor das manhas desse mundo. 

Nessa hora é importante um guia da nossa confiança. Qualquer deslize, adeus curso superior de engenharia. Eu já tinha noção de que precisava sair debaixo da saia da minha mãe e, para mais longe ainda, do cinturão do meu pai. Os impulsos adolescentes me faziam correr esse risco.

 Um sanfoneiro, numa salinha apertada, já havia começado o “moído”. Algumas matronas se desmanchavam para um adolescente com cara de rico. Eu era esse “cara”. Agora não, tenha calma, avisava-me Ulisses. Elas me abraçavam, mas Ulisses as mandava sair fora. Você não vai se arrepender. A mascarada vale a espera e o preço, reforçava ele enquanto apertava a mão de muitas que estavam no salão.  

Eu, ansioso, andava de um lugar para o outro. Senti-me sozinho. Ulisses havia desaparecido do meu olhar medroso. Poucos minutos depois, chega ele com um pano preto. A mascarada te escolheu. Quando chegar lá coloque a venda. Ela só deixa você entrar quando tiver certeza da sua obediência. Deixe-a te conduzir. É seguro, contudo, se ela descobrir que você quer investigá-la, serás expulso do quarto. E o melhor, disse Ulisses. Ela não vai cobrar nada. Eu disse que era sua primeira vez. Isso a deixou animada. Vá!

Segui o corredor pouco iluminado. Da porta entreaberta, saiu uma voz perfumada dizendo para que eu colocasse a máscara. Entrei e tudo aconteceu conforme o imaginado e combinado. 

Duas horas depois eu voltava para a pousada de dona Edileuza. O frio foi intensificado pelas roupas molhadas. No outro dia, recebi, das mãos de Mariza, o meu guarda-chuva esquecido no quarto da mascarada. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.05.2022 – 18:03



Um comentário:

  1. Tão perfeito quanto o pecado, o conto. Parabéns! - Gilberto Cardoso dos Santos

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