O REVERSO
A liberdade trouxe consigo o fio dental. Trouxe também a valorização da desenvoltura, do corpo e a extinção da vergonha. Muitos ensaios à frente do espelho até o dia da exibição. Antes um pouco, havia tanto cuidado que até cadeado se usava. Com a tentação crescente de mostrar-se, o vício se instalou. É a moda, inclusive, já até deixou de ser de tão usual que ficou. A toalha na cintura passou a ser usada em praias movimentadas, mas não caía bem utilizá-la no riacho, debaixo da ponte, ou mesmo nos serrotes. A cidade inteira saberia. Atrairia banhistas pouco usuais das poças d’água, e as moças que se banhassem assim não eram escolhidas para matrimônio.
Há meio século que já havia ensaios para se exibirem com trajes curtos. Esse querer influenciava na decisão de, enquanto jovens, se apressarem.
Não podendo ser dona do próprio corpo, casos houve, ainda que raros, em que a insatisfeita se matava ou ia para casas de entretenimento.
As feias arriscavam-se nas cozinhas das madames. Era uma forma disfarçada de poder olhar e ser olhada. Muitas vezes era na cozinha, na cama, no sótão, divertimento dos machos da casa sendo atraídos pela comida perfumada. Quando os quartos eram contíguos, a invasão sorrateira era inevitável, principalmente, à noite.
Os rigores da lei eram contra as subservientes, e não adiantava reclamar. As ações giravam em produzir e se reproduzir. Ninguém se importava com as consequências morais, bastava pedir perdão no confessionário dominical, e estaria tudo resolvido.
Os impulsos dos homens corriam para a necessidade de povoamento ligeiro, e era um Deus nos acuda. Fugas aconteciam, entretanto, existia os caçadores de donzelas gratificados pelos pais. Saber o paradeiro de uma delas não era tão difícil. Depois, passou-se a negociar com as mulheres fugitivas no sentido de treiná-las na arte do amor. Era um bom negócio, pois não faltava usuários. O comércio próspero e a chance de não mais voltar para o rigor familiar, transformou caçadores em cafetões.
A obrigação com higiene nem sempre existia, tendo em vista que poderiam ser abandonadas quando inseridas na planilha de mercadoria estragada.
Saiegue era órfã e morava com uma tia quando resolveu disponibilizar-se em busca de aventuras. Aos vinte e dois anos começou a colecionar namorados de acordo com as visitas. Organizava para que cada um chegasse e saísse ao seu sinal. A tia animou-se com a variedade e ficaram as duas naquele rodízio, faturando o que muitos homens abastados da época não conseguiam.
Tinham empenho no que faziam, e quando alguém era surpreendido na mesma residência, uma passava a responsabilidade para a outra, e assim divertiam-se durante tardes e noites, madrugadas e manhãs. No início, as duas dormiam em sistema de rodízio. Quando alguém batia no portão, logo era puxado para dentro.
As vizinhas olhavam, algumas censurando-as e outras invejando-as. Rapazes de boa estampa motivaram a curiosidade das lindas que logo se ofereceram para fazer parte da casa. Cuidar do jardim, arrumar, eram tarefas das iniciantes naquele manjar dos deuses, como era conhecida aquele endereço.
Para as que estavam com dificuldades em fazer o enxoval de casamento, eram autorizadas, pelos noivos, para consegui-lo através do trabalho na casa. Depois de realizado o himeneu, seriam senhoras de respeito, coisa que nem sempre o vício do dinheiro farto deixava.
Algumas dissidentes tentaram planejar o mesmo modelo do outro lado da rua, porém, não encontraram moças dispostas a ficar esperando. A gentileza da tia e a beleza de Saiegue eram insuperáveis, além das virtudes de terem sido educadas ao piano, lições de balé e frequência na biblioteca.
Lá, apesar do ambiente ser propício, só não era permitido farras. Uma casa de respeito que sempre foi, não seria bom abrigar momentos de algazarra que mudariam a fama dos antigos donos. Acredito que era isso que chamava tanto a atenção dos frequentadores.
Mesmo tomando as devidas providências, Saiegue engravidou. A filha que nasceria era fruto de um cliente afeiçoado. A tia ficou um pouco desorientada desde o crescimento da barriga, agora não tinha como voltar atrás.
A notícia do nascimento correu entre os frequentadores que tiveram surpresa, pois desde o momento da gestação que Saiegue não aparecia em público. Discretamente, ausentou-se de todos os frequentadores, inclusive, pela manhã o local permanecia sem atendimento. A tia e as outras ajudavam no enxoval da criança, e sempre houve uma confraternização de tal maneira que Alíria, ao nascer, contou com vários braços para acalentá-la.
Depois do batizado, Saiegue seguia cuidando e trabalhando, lembrando-se da responsabilidade maior em guardar o que sobrava. Um emprego melhor de que aquele não existia, todavia, sua preocupação era com o futuro. Seu tempo precisava ser monitorado para apressar a reserva no banco. Não tinha uma bola de cristal para dizer até que dia sua tia estaria à frente, e não concordava em criar a menina naquele local.
Um homem está aí querendo falar com você, disse a recepcionista. Só mais tarde, respondeu-lhe Saiegue enfatizando que a abertura aconteceria, exatamente, às onze horas. Ele sabe, e por isso veio mais cedo. O assunto é estritamente pessoal.
Na verdade, Kleyron era o rapaz que Saiegue tinha certeza de ser o pai de Alíria. Estava querendo levar a petiza para criá-la longe da mãe. Só se for depois de um ano, a não ser que você me leve junto, respondeu-lhe Saiegue. O que será que vão falar de mim? Vim para levar a guria, mas você...
Saiegue foi ter com a tia que só não expulsou Kleyron a socos e pontapés porque não havia força suficiente. Chispa daqui! Não precisamos de você. Ela terá uma vida digna para ter até sobrenome. Passe bem! e nem venha mais aqui na condição de cliente. Ele se foi, mas antes pediu para fazer uma fotografia, junto à filha.
O rapaz era influente, e por sede de vingança instalou uma boate com preços mais acessíveis e mulheres vindo da capital. Nada restava para ele, a não ser renunciar ao orgulho de ter uma herdeira.
Saiegue, depois da morte da tia e de ver a filha mostrando um encanto novo, resolveu vender o casarão e mudar-se para bem longe daquele lugar. Não suportava saber que seu concorrente e ex-predileto estava crescendo enquanto seu negócio declinava. Venderia antes que houvesse total decadência, pensou ela e assim o fez.
Os costumes foram ampliados naquela outra casa de aconchego. As farras podiam acontecer até tarde da noite. O importante para o proprietário era a força do dinheiro. Interrompia conversas das meninas para encaminhá-las aos que chegavam apressados. O vício de ganhar muito não impedia que o tempo fosse indo em direção ao aniversário de vinte anos de casa. Seria comemorado com nova leva de beldades, exclusivamente, contratadas para a data festiva.
Mulheres jovens e hábeis chegaram de acordo com o planejado. Uma delas atraía a atenção. Alta, beirando a idade da aniversariante, essa mulher teve seu cachê elevado naquela noite. Seu apelido era Afrodite, alusão à deusa grega do amor, de tão bela que era. Anúncios de boca em boca propagaram-se. Havia agenda lotada para que Afrodite transformasse em felicidade a vida dura daqueles aldeões.
O que era feito com total profissionalismo, tornou-se pessoal quando o Senhor Kleyron solicitou os serviços de Afrodite. O senhorio a desejou na noite seguinte ao aniversário. Quando ele chegou ao próprio aposento, a famosa garota já o esperava olhando um álbum de fotografias. Jantava e folheava o álbum. Kleyron quis a atenção voltada para ele e lhe tirou o álbum das mãos. Alíria o olhou, levantou-se e saiu. Não poderia consumar o ato com seu próprio pai.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 22.05.2022 – 09:54
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