segunda-feira, 23 de maio de 2022

FASE DE TRANSIÇÃO - Heraldo Lins

 


FASE DE TRANSIÇÃO


Ela se foi, num final de tarde, sem dizer adeus. Sua trajetória mantinha-se viva dando vivas a outras vidas. Uma dessas vidas, levanta-se e abraça o filho de seis anos inconformado por perder a avó. O abraçado não aceita a ideia de ela ter virado estrelinha, e suas lágrimas abundantes imitam as da irmã.

Ao lado das células assassinadas pelo câncer, outros parentes se submetem a dormir nos bancos da funerária enquanto a madrugada espera o dia clarear. Precisam se mover em direção ao estático, e permanecem, também, estáticos por alguns momentos. É como se nada tivesse acontecido naquele fio histórico de gente. As lembranças boas, e outras nem tanto, vagueiam misturando-se com a realidade que se tornará lembrança conformada.  

Agora, é só esperar que aquela sem-vida receba reverências de praxe a caminho do depósito natural. Não é possível ficar contente. O ambiente chama por silêncio e o silêncio puxa a reflexão para perto da consciência de um dia ter que passar por aquilo tudo. É vergonhoso ficar murcho, pálido e inerte diante de “personae non gratae” e “censurantes”. Mas o que fazer...? O destino não muda a rota por causa de vergonha descabida e nem por que olhares fuzilantes cruzarão os que sobrarem vivos. 

Pouco importa se uma ponta de alegria surgir aos que se sentirem vingados da descendência ali representada. O protocolo recomenda contratar pessoas, mesmo  desconfortáveis, para proferirem palavras de conforto. Oficiais do ofício doutrinário fazem a festa numa hora dessa. A vulnerabilidade deixa brecha para encaixar o “toma tempo” sem uma certeza do que estão dizendo. Serve para preencher o espaço das dúvidas comuns. A tradição no ritual continua trespassando gerações sem modificar a pausa necessária para o sepultamento. Sepulta-se, também, as ideias, esperanças e motivações geradas a partir daquela vida anteriormente influenciadora. 

Outras vidas surgirão influenciando as que estão a meio-termo sem se dar conta. A pressa, lentamente, é beneficiada pela aproximação da hora exata de depositar o pó ainda agregado, que mesmo sem movimentos exteriores, permanece sendo mãe, avó e esposa. 

Nessa hora, entra em cena a pergunta para onde se está indo. Perguntas que esbarram em um muro invisível que não deixa passar as verdadeiras respostas com medo da existência da mentira. O sentimento orientador é desprezado, pois o sentir depende dos órgãos enganadores que apresentam defeitos, como aqueles estendidos em cima da pedra, por isso, não confiáveis.

Evita-se o sangramento invisível do golpe provocado pela perda de uma pessoa amada. Para suportar com mais clareza essa vida extinta, os sons do choro não  devem ser maquiados pelos óculos da vergonha, porém, olhos sem-vergonha espreitam um filete de fingimento para torná-lo assunto no jornal da calçada. A dinâmica, da “conversa fora”, exige interpretações nem que sejam errôneas. É um mundo misturado por sentimentos que não querem dar trégua. Uma hora se conformam, outra, revoltam-se, e mais adiante, olham para trás querendo reviver o que se deixou pelo meio do caminho, só que o tempo não espera. 

Outros traumas estão listados para suavizar o mais recente. Não foi o primeiro nem será o último andarilho a percorrer o caminho “pedregulhado” da angústia. Os que ficaram no vazio da existência perambulam pelos sentimentos avassaladores das vivências compartilhadas e não aproveitadas. Durante o caminho do último adeus, os semblantes trocam informações surdas e mudas, entretanto, tão significativas quanto os discursos de Demóstenes. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.05.2022 – 16:54



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