NOITE DAS VERDADES
Ela cantava diante de um público que permanecia indiferente à sua música. Quando acabou o show, a multidão e demais componentes da banda permaneceram estáticos. Naquela noite de sexta-feira treze, o mistério da meia-noite finalmente chegara. De branco, os fantasmas tomaram os seus lugares e assumiram os instrumentos musicais com maestria jamais vista. Deu-se início a uma sonorização eternamente suave, e a partir daí outros fantasmas foram chegando, de forma que o salão ficou, totalmente, esbranquiçado.
Tomados de grande entusiasmo, eles executavam canções que falavam de o amor entre a cruz e a espada. A cantora presenciava tudo isso sem poder acreditar, e, aterrorizada, saiu correndo em busca da realidade com a qual estava acostumada. Eu fiquei.
Os fantasmas que estavam tocando foram substituídos por outros da plateia, sucessivamente, até que todos puderam passar pela experiência de palco. Sem medo, eu entrevistei alguns deles e registrei que naquele mundo todos têm as mesmas capacidades. Basta querer assumi-las que a destreza e o conhecimento estão ali prontinhos para auxiliá-los, por isso, não existe ganância em querer se mostrar. São conscientes do que são e para eles isso é o suficiente.
As suas aparências, também, são volitivas. Quando querem, assumem a forma de gordos, magros, altos, baixos, feios ou bonitos. Somente a cor branca é que não muda, deve ser por causa do estereótipo criado, disse-lhes. Não, respondeu um deles. Nos veem assim porque querem ver, mas nós somos de todas as cores ao mesmo tempo. O problema é que gostamos de aparecer somente à noite, e o branco é a melhor cor para se destacar no escuro.
Confessaram que preferem surgir nesse horário porque é o momento em que há mais gente medrosa circulando, e, sem dúvida, recebem mais atenção. Exemplificaram: já pensou se aparecêssemos na praia em pleno sol a pino...? Ninguém iria ficar apavorado. E continuou. Sobrevivemos de acordo com a energia desprendida pelo medo. Sem essa energia ficamos paralisados iguais aos humanos quando passam muita fome e precisam ser transferidos para outro departamento. O nosso departamento não tem nada a ver com a morte. Já nascemos fantasmas, e aqui e acolá somos escalado para movimentar um ser gerado. Neste caso, acompanhamos o crescimento do corpo e só depois que ele torna-se cansado e velho, voltamos para nosso lar de origem.
Quando um de nós é mandado para assumir o comando de um recém-nascido, a memória antiga é arrancada e guardada no armário das experiências. Ao voltarmos, passamos a viver com o acréscimo daquela vida.
É mais um estágio, dentre muitos, a que somos submetidos. Há um outro que é ficar correndo atrás de gente sem fé. Esse pessoal é muito complicado porque a cada dia aparece mais incrédulos com um livro debaixo do braço, e nós quase não damos conta do serviço.
Esse negócio de dizer que o mundo dos fantasmas é o mundo dos mortos, não tem fundamento. É um mundo mais real de que o mundo que chove, faz sol e anoitece. Eu mesmo, constantemente, vou visitá-los e até gozo de grande intimidade. Quando posso vou lá para curtir o que há de mais verdadeiro, e volto superconfiante.
Recentemente, tive que ir a um banquete. Ao notarem minha presença, logo me encaminharam para sentar-me perto de Mozart. Perguntei-lhe o que estava fazendo, além de comer, claro, e ele disse que estava compondo como sempre fizera na vida. Explicou-me que teve que assumir esse setor para não desmoralizar a irmandade. Perguntei-lhe para quem eram enviadas aquelas composições e ele respondeu que vão diretamente para a cabeça dos que vivem do lado de lá.
Muitos fantasmas permanecem pesquisando em áreas diferentes com o mesmo empenho de Mozart. Explicaram-me que esses conhecimentos são integralizados durante o sono de quem está antenado com eles, lembrando que a antena é construída pelo pensamento. Quanto mais a pessoa pensa sobre um determinado assunto, mas os pedidos chegam, e, imediatamente, são enviados para o solicitante. Só em pensar a pessoa já aciona o código da entrega, é assim que funciona.
Fiquei curioso para saber quem estava enviando-me textos literários. Ninguém, disseram-me. Você é um fantasma e ainda nem se deu conta.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 28.05.2022 – 08:03
Humor na medida certa, Heraldo! - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirObrigado, Gilberto.
ResponderExcluirObrigado, Gilberto.
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