UM UNIVERSO APERTADO
Eu conheço a verdade, mas não posso dizer nada para não torná-la mentirosa. A verdade é verdadeira até o momento que se conta, depois passa a ser desconfiança, não tão verdade quanto se pensou. Por isso não me arrisco a dizê-la. Talvez a partir dos dez anos que eu a conheça, desde então resolvi permanecer em silêncio.
Por já conhecer por demais a verdade fui atrás da mentira. Procurei como ninguém, mas não a encontrei. Quanto mais estudava mais percebia que ninguém falava mentiras. Objetos que duram a vida inteira, intervenções cirúrgicas que salvam vidas, a existência da felicidade trazia a verdade tão verdadeira que abusava. A cada dia aumentava e se fortalecia em mim a consciência de estar num mundo onde não existia falsidade. Com essa monotonia em conhecer tudo de acordo com o que estava sendo dito, resolvi passar pela experiência de morrer, já que aqui como vivente eu já havia experimentado todas as emoções dentro dos padrões reais, justos e verdadeiros que um ser humano pode experimentar.
Naquele dia eu não acordei cedo, acho que foi devido às nuvens escuras com chuva fina intermitente. Abri a cortina e lá estava o mar aberto sorrindo com ondas em forma de língua de sogra, constantemente sopradas. É hoje que deixarei o mundo dos vivos, pensei. Há alguns meses que eu vinha adiando essa minha decisão. Meu grande remorso é que não havia feito nada que minha ausência justificasse saudades, mesmo assim, subi para o décimo andar. Atrás da porta, uma cadeira sem o assento e com cupins morando nela, e que eu estava indeciso em colocá-la no lixo. Isso me tirou um pouco a concentração do que estava decidido a fazer. Acendi o fogão. Queria partir com a barriga cheia. Minha comida preferida eu não deixaria para que os técnicos da polícia saboreassem por mim. Deixo esse mundo e nada para usufruto de outras pessoas. Fico sentado em silêncio saboreando o que aprendi a fazer tão bem na tacha escurecida pelo fogo. Além do silêncio, acompanho-me do escuro e da indecisão.
Não fiquei consciente que estava adormecendo, só quando acordei foi que me dei conta que estava vivo. Havia mais uma vez adiado minha fuga para outra dimensão. A vontade havia passado. Como já era manhã do outro dia, concordei com o chamado do sol para ficar no jardim do prédio onde eu costumava sentar-me. Havia uma menina que trazia sua lagartixa para passear. Ela estava com seu animal de estimação, e fiquei a observá-la a conversar com Cinélia.
Senti vergonha de estar olhando um ser não muito bonito no jardim, amarrado com um barbante e segurado por uma menina de pernas finas e cabelos “abalaiados”. Fiquei em silêncio nem querendo a amizade da menina nem da lagartixa. Apenas fixando na memória a experiência em estar vivenciando algo que não era para estar. Se houvesse apertado o gatilho ontem, hoje, nem jardim, nem menina nem lagartixa existiriam para mim. A menina parece não gostar da minha presença. Levanta a lagartixa pela linha e sai com ela numa bolsinha que traz a tiracolo. Fico pensando se a lagartixa pensa em se suicidar ou só em comer pequenos insetos e servir de diversão para a menina. E a menina? O que pensa da vida. Ver-me como um homem sério, de barba por fazer e cabelo igual aos dela, quem sabe.
Olho para a planta viva com um galho seco em seu caule. O que a planta pensa daquele galho? Será um infortúnio estar vivo e carregar algo morto em seu corpo? Averiguei se havia algo morto dentro de mim. Nada, apenas a vontade de morrer. Que droga! Minhas vontades veem e vão. Não consigo mantê-las por muito tempo, e como não sou de agir de imediato estou sempre adiado as coisas, inclusive, o suicídio há muito pensado.
Veio-me a ideia de estar morto e não me dar conta. A menina era um exemplo comprobatório. Quando cheguei ao jardim ela nem olhou para mim. A lagartixa continuou balançando a cabeça. Mas o que justifica ela me ver apenas como um homem de barba por fazer? Percebi que isso eu mesmo disse que ela havia dito. Eu pensei por ela. A ideia de estar morto desanuviou-se quando chegou uma vizinha que me conhecia. Sentou-se ao meu lado e começou a falar mal dos vizinhos. No final da manhã, ela já estava tão agoniada por eu não opinar nas suas opiniões que me convidou para subir. Íamos almoçar juntos, disse ela. Fui.
Na sua unidade existia um caixão que ela disse que servia para dormir. Só conseguia dormir tranquilamente dentro daquele ataúde. Contou-me que é lá que se vê como uma vampira, e pela manhã sente-se revigorada. Fiquei em dúvida se devia fazer amor com ela dentro do caixão, já que ela me convidava beijando-me na boca, mas depois do décimo beijo, contado sem errar, me acostumei com a ideia. Aceitei sua proposta, e no auge da vampira virar morcego a tampa caiu e travou com nós dois dentro.
No primeiro momento veio-me o desespero de morrer sem fôlego, mas lembrei-me que não tinha importância, afinal de contas era isso que ontem eu estava querendo realizar. Fiquei esperando acabar o oxigênio enquanto a vizinha gemia, não sei se de dor ou prazer. Como se sente? ela perguntou. Estou sentindo uma dormência nos braços, acho que vou relaxar totalmente em cima de você. É, mas não tire pelo amor de deus, quero morrer espetada. Você não está desesperada por sentir que não vamos sair com vida daqui? Não se preocupe, disse ela, se um dia iríamos morrer então morrer abraçados é o sonho de muitos casais. Você está com hálito de cigarro. É, fumei antes de descer para o jardim, escutei dela. O ruim é que estou falando com você, mas não vejo sua boca. Está muito escuro aqui. O importante é saber relaxar. Teremos muito tempo até morrermos.
Eu que quis me suicidar e, agora que meu suicídio está em andamento, estou querendo estorná-lo. Dá para você mexer um pouco? Só se for com os olhos. Beije-me! A tampa está pressionando a minha cabeça, por isso não consigo virar o rosto. Você não tem uma saída de emergência desta urna? Ela ficou em silêncio e eu estava querendo me coçar. Uma gota de suor desceu pelo caminho da coluna e provocou uma comichão.
Depois de um tempo em silêncio ela perguntou: como consegue? O quê? Permanecer dentro de mim sem relaxar. Eu não estou dentro de você. Eu estou sentindo algo me preenchendo. Deve ser meu chaveiro em forma de figa que sempre trago comigo. Essa sua barba me causa irritação e sinto vontade de morder a ponto de arrancar um pedaço. É melhor você arrancar um pedaço do forro dessa urna e depois passe para a madeira. Sair daqui para viver uma vida rotineira, monótona sem emoção. Prefiro ficar, mesmo tendo que aguentar você soltando gases. Mas não fui eu. Foi sim, eu conheço o produto de quem gosta de camarão com cebola, e com certeza você comeu ontem. É minha comida preferida.
O que faz da vida, além de comer camarão acebolado? É melhor pensarmos numa estratégia para sair. Deixe de ideia besta. Quero sentir a emoção de defecar com um homem em cima de mim. E você está com vontade? Meu organismo é muito certinho. Todos os dias ao meio dia eu faço, e acredito que hoje não será diferente.
Acredita em reencarnação? Parece que está vindo. É melhor não. Segure. Não dá. Vai ser meu sonho realizado. Tenho pavor a locais fechados exatamente por ter que exalar o que mais detesto. Tem que haver uma saída. Aconteceu, e mesmo ela tendo realizado seu sonho ainda tive tempo de pular fora graças ao seu cão treinado destravar a tampa quando algo estranho acontece dentro do caixão. Mais estranho do que isso, impossível.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 06.04.2022 – 07:11
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