MÉDICO FRUSTRADO
Há no corredor um som comovente de choro de um bebê. Estridente que dá vontade de bater à porta e perguntar à mãe se quer ajuda. Devo ou não fazer isso? Se fizer e precisarem de ajuda, irá atrapalhar minha programação de chegar na hora certa ao trabalho. Não conheço a vizinha e nem me interessa perder o horário para ajudar a uma estranha. Sigo viagem sabendo que por perto há toda uma estrutura de recepcionistas e ambulâncias para dar suporte, caso houvesse necessidade. Será que não é egoísmo de minha parte seguir viagem? Se for, ninguém está olhando, e, mesmo que eu queira ajudar, possa ser mal interpretado. O que será que ele quer em se oferecer em ajudar-me, a mãe solteira irá perguntar em voz surda. Prefiro apertar o painel do elevador.
Consigo chegar a tempo. Deixei o bebê chorão e a mãe aflita para trás. Agora o que interessa é ajudar às pessoas que estão no corredor do hospital. Meu papel é esse mesmo. Consertar osso quebrado, coração entupido, carroço em seios. Já vejo que o expediente começa trazendo-me um baleado. Cirurgia de precisão com projétil alojado perto do pulmão. Se falhar ele morre. Nem quero saber a ficha corrida do paciente. Se souber, irá me influenciar para um erro justificável. Opero. Levam-no para a sala de recuperação.
Uma mulher se afoga no seco. Por essa eu nada posso fazer. Os equipamentos estão todos ocupados. Vou escolhendo quem deve morrer. Sou um Deus nessa escolha. Tenho saudades do tempo em que acordava tarde com o café pronto na mesa. Doutor, há uma criança desfigurada por uma mordida de um Pitbull. Refazer o rosto da menina de oito anos será bem mais difícil. Meu trabalho terá repercussão no casamento dela daqui a quinze anos. Sua beleza está em minhas mãos. Veio-me à mente quando eu caçava, ainda menino. Atirei numa ave de arribação e estraçalhei sua cabeça. Não havia como ela escapar. Era de perto. Refaço o rosto da menina pensando no estrago que fiz no pássaro. Minha dívida com a natureza está sendo paga, imagino.
Hora do almoço. Somos separados dos demais profissionais. Enfermeiros e técnicos de um lado, médico de outro. Prefiro ficar calado saboreando a comida diferenciada. Chamo de ração. Nem sei se vou conseguir terminar a refeição em paz. Escuto mais uma sirene chegando. Vem à mente a lembrança do contrato assinado para prestação de serviço. Enquanto aquele(a) paciente tenta chegar a mais um minuto de vida, penso na guerra, profissão e sucesso. No caminho para a urgência, encontro uma antiga amiga que era muito brava, agora está mansa com os dias contados devido a um câncer no pâncreas.
Estou cansado de tudo isso. Mas fazer o quê? Muitos irão dizer que sou um adulto infantilizado se deixar esse trabalho. O jeito é soltar palavrões silenciosos. Meu cansaço e falta de perspectiva me deixa sem vontade de prosseguir, apenas mantenho minha conta bancária engordando e eu, também, vou junto sem controle da gula.
Na mão uma garrafa de água. A que ponto cheguei. Uma simples garrafa moldando a água em seu interior e eu me servindo dela para moldar meu pensamento. Aproveito o momento para abrir minha verdadeira essência de um ser pensante que não consegue pensar por si. Estou sendo empurrado pelos acontecimentos. Muitos anos estudando para me autointitular mecânico de corpos, apenas isso.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 04.04.2022 ─ 11:57
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