segunda-feira, 4 de abril de 2022

PROGRAMA DE CLASSE MÉDIA - Heraldo Lins





 PROGRAMA DE CLASSE MÉDIA


Três adultas ao redor de uma criança divertindo-se apenas com o andar trôpego da menina. Ela, séria e indiferente ao abrir caminho entre as três sorridentes, dava a impressão que era um brinquedo ao qual haviam dado corda e ela caminhava em círculos apenas sentindo o prazer ou desconforto no andar. Pela expressão não havia satisfação por parte da pequena, todavia, o mistério sobre sua satisfação era incerto, já que continuava tentando aprumar a direção. Uma das grandes, possivelmente a mãe, abaixou-se para soprar palavras orientadoras sobre o percurso, mas pela muita variação continuada, nada foi obedecido. 

Sentado em um banco da praça havia um casal sem filhos avaliando a cena um tanto ridícula. A menina, por outro lado, nem se preocupava em julgar o casal de ridículos por estarem a observá-la. Esta queria apenas desenvolver seus membros inferiores, só isso, e nem havia pedido para ser avaliada. 

O chão liso do shopping facilitava o espetáculo da sem coordenação motora. As luzes refletiam o vestido branco acima do manequim da menina. Em fase de crescimento, foi interpretado como motivo de o comprarem bem maior para não ficar perdido com rapidez. Parecia mais com uma velha de que com uma criança. 

Observando-se nos detalhes do rosto, o homem, do casal de desocupados, comentou que ela era antipática por natureza, assemelhando-se à filha do casal da família Addams. Estavam a fofocar diante da cena. Parece que o bom dos passeios inesperados é poder conhecer pessoas, e, consequentemente, falar delas, não necessariamente, de mal. 

Mas o divertimento fica sério quando se pensa no trabalho que deu dar banho naquela guria, enxugá-la, colocar frauda, vestido, e trazê-la para o shopping só para vê-la rodar no salão, pensou o homem do casal sem filhos. Depois, chegar em casa, despi-la, limpar, alimentá-la e esperar cansados se ela está disposta a deixá-los dormir em paz. O homem estressou-se com a possibilidade de se ver na situação de pai daquele ser rodopiante. Levantou-se e saiu deixando o movimento permanecer movimentando-se sem o seu olhar perscrutador. 

Mais à frente vendedoras jogando a isca de um boa noite e dizendo para a mulher: dê um presente para os seus cabelos. Gostei da frase ensaiada, disse o marido para a esposa que agradeceu e prosseguiram passeando. Essas vendedoras nem olhavam para a gente, depois da crise, é tanta boas-noites que enjoa. 

Mais à frente, uma degustação de pipocas de vários tipos. O marido estira a mão estilo mendigo. Precisa ser simpático nem que seja para aceitar uma pipoca. Há vários tipos: crocantes, com chocolate, morango... o preço é vinte e três por um saquinho. Vá roubar no inferno, pensa ele despedindo-se da vendedora que implora para que não a deixem sem emprego. O valor do produto poderia ser vendido por cinco, mas o espaço alugado come tudo. Na saída ainda deixa dez dinheiros pelo estacionamento. Pensa ele: a separação se faz pelo muro econômico, e vão felizes para casa por terem se divertido muito no shopping.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 01.04.2022 - 21:44



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