domingo, 28 de novembro de 2021

SERÁ QUE É ASSIM? - Heraldo Lins

 



SERÁ QUE É ASSIM?


Cansado, sentado com um blusão preto de frio, escuta, vindo da sala ao lado, a moça do financeiro dizer: 

_ Preciso ir prestar contas.

Esfrega um pé no outro protegidos pelos sapatos marrons. Um bocejo suspirante faz seus pensamentos andar pelo mundo do sono vespertino. Ah, se esse sono fosse à noite. Esforça-se para não dormir no trabalho, mas mesmo que quisesse seu mal-estar não o deixa cochilar. Da sua cadeira giratória verde-escuro, olha para o marcador do ar com vinte graus. Tem consciência que precisa ser útil mais um dia. 

Lá longe uma porta bate arrancando-o das garras do relógio. Não quer se mostrar sonolento com tantas coisas para fazer. Escuta sussurros que não são salvos no entendimento. 

Reanima-se, levanta-se e sai. Abre a porta e vê o corredor ladeado de salas. Chega à rua. Olha para o lado esquerdo. Segue sem que ninguém fosse avisado para onde ele iria. É estranho seu proceder. Abandonou o trabalho e nem fechou a porta. Caminha sem destino querendo apenas encontrar o horizonte. Quanto mais caminha mais vontade tem. 

Está alheado e tem consciência disso, mas não quer tornar. Como é maravilhoso estar alheado. O sol é frio, a brisa estática, a lama, florida. Vai caminhando enquanto os carros buzinam à sua passagem. Muitos acenam para ele, inclusive, amigos de infância há muito esquecidos. Será se está devaneando? 

Respira com dificuldade, todavia, continua caminhando quase sem andar. Seu silêncio o faz ser diferente do antes. Não tem aonde chegar. Já foi a todos os lugares, entretanto, nenhum lhe deu tanta paz quanto agora. 

Na sua caminhada encontra a mulher e os filhos indo para algum lugar. Deixa estar por alguns momentos em família e sai sem se preocupar com problemas mundanos. A vida inteira se dedicou a ganhar rugas e cabelos brancos. Está disposto a permanecer andando, mesmo assim, entra no restaurante acompanhando os seus. 

Não sente vontade de comer onde tantas vezes saboreou o melhor. Sai de lá e vai ao palácio onde governou por muitos anos. Cada cômodo conhece como a palma da mão. No banheiro ver a água escorrendo pela torneira fechada. Também relembra documentos assinados e decisões tomadas. 

Está de saída quando alguém tropeça e cai derrubando o chá em sua camisa. Nem se importa. Sua disposição está voltando. Neste momento sente-se jovem e curado das dores. Sua visão melhorou, fazendo-o atirar os óculos fora. Seus cabelos pretos estão de volta, seus dentes brancos, também. Será um sonho? Quer permanecer assim pelo resto da vida. Que vida? 

O silêncio é quebrado pela moça do financeiro que grita: 

_Acudam que o patrão morreu!          


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24.11.2021 – 15:31



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