sábado, 13 de novembro de 2021

O GUARDIÃO - Heraldo Lins

 


O GUARDIÃO   


Chega o momento em que se escolhe o escuro e o silêncio como companheiros. Com o passar do tempo a tendência natural é fugir do próprio eu. Essa fuga é silenciosa e não empolga ninguém em querer saber como foi a viagem porque nela não existem aventuras nem ações que despertem o interesse alheio. 

Se alguém perguntar como foi as férias e ouvir como resposta que o usufruto consistiu em trancar-se em casa exercitando o silêncio, perde-se amizades além de ser apontado como maluco. Não se permite esse tipo de atitude na sociedade atual. Temos que estar fazendo algo de forma voraz senão seremos excluídos. 

Ninguém quer ser excluído, por isso é preciso coragem para a prática do “ficar à toa”. Uma programação coletiva de ficar de bobeira em um salão, não teria adeptos. A maioria corre para o que está na moda, e isso significa ir para a balada, beber todas, pegar todas, porque a vida pertence aos movimentos. Viva eles! 

Nós, os consumidores do tédio, somos vistos como animais reclusos, homens das cavernas ou criatura das profundezas. São várias as denominações, e para fugir desses estereótipos ando sorrindo nas fotos, correndo no calçadão e pilotando drone. 

Drone é a última moda dos ricos, e para não ser discriminado, já comprei o meu. Todos os dias vou para o descampado e fico fazendo acrobacias, ou melhor, fazia. Na última segunda-feira um pit bull acabou com meu brinquedo. Fiquei sorrindo para que o dono não o “estrumasse” gritando pega ele. Arquei com o prejuízo, disfarcei, entretanto fiquei com raiva de cachorro. Essa raiva foi crescendo, e quando cheguei à casa da minha cunhada fiz o cãozinho dela voar. Agora estou praticando chutes caninos. Eu sei que é contra as regras sociais chutá-los, mas precisava anular meu ódio pela perda do drone. 

Minha vocação para chutar vem de longe. Lá em casa eu chuto o balde com frequência. Minha mulher já pegou o jeito, e às vezes saímos brigando para ver quem chuta mais. Qualquer raiva é motivo para estardalhaço. Ultimamente dei uma pausa devido ao inchaço na canela: aprendi que panela de pressão nunca se deve chutar.

Nessa pausa forçada virei adepto de olhar o branco da parede. Fico horas e horas observando a sombra na parede mudar de lugar. Fiz até um relógio de sombra sem o tic-tac. Se fosse pelo menos toc tuc ainda dava para ouvi-lo, mas tic-tac lembra os passos da mulher foice se aproximando. É como se ela estivesse “tiquetateando”, permanentemente, em minha direção. Prefiro colocar em prática minhas “geniais ideias” sem me lembrar dela. 

Muitos sabem que o tempo não anda para trás, mesmo assim, nem levam em conta esses acertos de conta no final, mas eu, sim. Faço questão de estar me lembrando, a todo instante, de cada minuto descontado do crédito da vida. Quando entro num banco, vasculho as paredes para ver se há portas para uma possível fuga. Caso apareça alguém armado querendo levar minhas preocupações, eu me escondo.

 Às vezes esqueço de vigiar o tempo, e assim que retorno a essa paranoia procuro logo atualizar os dados. É um trabalhão, mas pelo menos a donzela vestida de preto sabe que estou a lhe vigiar para quando ela vier eu dizer: SURPRESA! 

Mas não sei até quando vou continuar nessa espera. Já ouvi falar que há um lugar onde ela não age: é dentro dos sonhos. Nunca ouvi alguém contar que sonhou morto. Sonhar por si só implica em se estar vivo. Sonho ou pesadelo, lá ela não entra. Hoje mesmo vou tentar embarcar nessa. Com licença!


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 05/11/2021 – 09:18



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