sábado, 3 de abril de 2021

MISTÉRIOS DA MEIA NOITE - Heraldo Lins

 


MISTÉRIOS DA MEIA NOITE

Arrumar o quarto do filho morto era tarefa árdua para dona Eugênia. Ela, aos sábados, olhava as fotos, chorava e fechava-se. O quarto permanecia organizado, mas suas ideias, não. Os parentes sempre comentavam que o menino não se criaria. Na família dos duros, morrer antes dos cem anos era uma anomalia. Dona Eugênia, aos cento e doze, não se consolava por ter perdido Tonheca, com noventa. Tão jovem e tão cheio de vida. Apesar de ser dos duros, Tonheca era mole por natureza. Nunca foi premiado nem em rifa de jogo do bicho. Na escola os meninos jogavam giz na professora, ele era o acusado. Um santo de índole boa. Quando em casa faziam doce, ele mexia e lambia a caçarola, não necessariamente nessa ordem. Claro que no outro dia o doce açucarava, mas isso não importava.

Ninguém o chamava para jogar bola. Era gol contra na certa. Além de tocar sanfona, ele compunha. Suas canções eram misturadas. A primeira parte um baião, no meio um rock e terminava em frevo. Todos gostavam dele, menos das suas músicas. Até seu Cipriano pedia para Tonheca desembrulhar os docinhos. O velho nunca aprendera a tirar o papel. Ele também vigiava para evitar que pulassem o muro e roubassem os ovos de seu Cipriano, única fonte de renda do desvalido. 

Quando era contratado para tocar, seu repertório composto por duas ou três músicas fazia a festa rolar até ao amanhecer. Na cidadezinha, Tonheca batia o sino, contava mentiras e ganhava o campeonato das bananas. Cada primeiro domingo do mês, juntavam-se em frente à matriz, e em uma grandiosa mesa eram depositadas bananas. Cinco minutos para quem comer mais bananas. Tonheca ganhava todas. A técnica de engolir sem mastigar fazia dele uma estrela em ascensão. Invictor, nas últimas disputas a comissão organizadora não aceitou sua inscrição. Acredita-se que morreu de desgosto por não poder comer mais bananas de graça. Seu apetite insaciável fazia dele motivo para apostas. Apesar disso, era magro.

Diziam que ele jamais dormia, apenas cochilava em pé. Andava rodeado de cães. Nem dele eram. Bastava Tonheca passar, para os cães o acompanharem. Diziam também que tinha parte com satanás. Nas noites enluaradas, desaparecia junto com a matilha. Nos cafundós das serras latidos e uivos deixavam todos em casa. Ninguém saia nem para ir à missa. No outro dia suas roupas rasgadas lhe conferiam lendas. Alguém doava novas até a próxima lua. Pela sua bondade os citadinos não o temiam. Pelo contrário. Sentiam-se protegidos. Tonheca sempre estava antecipando-se às catástrofes. Todos saíram da cidade quando ele ordenou, poucas horas antes da barragem se romper. 

O mesmo carisma com os animais, ele tinha com os humanos. Quando havia uma rusga na sala de sinuca, ao chegar os jogadores voltavam à paz anterior. Passava pouco tempo em cada lugar. Não tinha trabalho fixo. Se alguém o contratava, o serviço estava pronto antes do combinado. Ninguém sabia como ele fazia cada tarefa. Se o viam fazer não se recordavam. Em uma dessas noites enluaradas, desapareceu, lembra dona Eugênia.    



          

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 25/02/2021 – 06:12

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