domingo, 14 de março de 2021

UMA CARGA DE LEMBRANÇAS - Heraldo Lins

 


UMA CARGA DE LEMBRANÇAS


Observando a chuva no portão de casa procurei nas minhas memórias algo que lembrasse um tempo bom. Encontrei uma bica. Uma bica de zinco no alto do prédio rosa.  Da minha residência dava para vê-la na esquina. Era uma deusa por mim admirada. A mais famosa da cidade por ter o mais forte jato d’água quando acontecia chuva. Fazíamos fila para suporta poucos segundos da água encachoeirada na cabeça. Era lá que aproveitávamos para encher as latas com água boa de beber. Quando o mundo ainda nem se preocupava em economizá-la, nós já fazíamos isso. Não por amor ao planeta, mas por amor aos nossos ombros calejados pelo peso do galão. Sabia que na floresta amazônica chovia todas as tardes. Ah! Como seria bom se pudesse ver minha rainha despejar-se diariamente. Mas ela ficava sem uso a maior parte do ano. Pertencia ao telhado majestoso do armazém de algodão. 

Eu tinha um certo respeito por saturnino, o dono do prédio. Não por ele merecer, mas apenas por ser o dono da bica. Os caibros, ripas e linhas, eu não os conhecia. Mas as telhas, estas sim, eu as admirava todas as manhãs na ida para a escola. Elas impassíveis e enegrecidas pelo lodo das raras chuvas, faziam do telhado um cenário assustador. Acreditava eu que ali era o dormitório das almas penadas. À noite, desviava-me quando passava em frente à bica. Tinha medo de que fantasmas se despejassem em mim. Mesmo do outro lado da rua, eu ficava olhando em direção ao alto imaginando que eles estavam me observando. 

A bica, eu não tinha dúvidas, tinha um olho grande assim, por onde passava a água. Quando não, utilizava para observar os meninos travessos da rua. Analisava quem merecia presentes no Natal. Eu não tinha noção das desigualdades sociais. Apenas sabia que os meninos que moravam na rua do pelo eram rejeitados por ela. Na passagem de ano novo eu, logo pela manhã, abria a janela para certificar-me que ela não havia sumido. Com o passar do tempo mudei-me para a cidade grande. Especializei-me em vendas de coberturas para casas de condomínio de luxo. Vários tipos de bicas eu comercializo, mas nenhuma se iguala àquela da minha infância.               



Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 21/02/2021 – 11:52

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