terça-feira, 29 de dezembro de 2020

METICULOSAMENTE METICULOSO - Heraldo Lins

 




METICULOSAMENTE METICULOSO

 

 

 

Estou fazendo o teste para saber quanto tempo gasto para preencher este espaço aqui. No momento nenhuma ideia tenho do que irá ser escrito. Não posso dizer que é a partir do nada porque tenho experiência há mais trinta anos preenchendo espaços vazios. Antes de nascer já fazia isso. O útero estava vazio. Lá fui eu preenchê-lo. Preenchi o silêncio do hospital com meu choro. Era ótimo quando o exigido era apenas choro. O grau de dificuldade foi aumentando. Preencha esses pontinhos, dizia a professora de caligrafia. Eu me empolgava. Achava tudo uma brincadeira. Você precisa preencher o próximo ano com sua presença, para isso tem que aprender a ler. Lá estava eu a decorar letras, juntar sílabas, formar palavras... para ser reprovado. Não aprendi a preencher, na primeira tentativa, o segundo ano. Fazia questão de não aprender para ser contra a professora sem-noção. Pode?  Desde pequeno... rebelde... Se eu aprender ela vai ser laureada. Não aprendo! Dizia comigo.

 

A autoestima forçou-me a mudar de ideia. Meus amigos preenchendo o ano seguinte, e eu no vazio da turma nova. Chutaram-me para a frente. A fila anda! Nesse tempo ainda não havia esse chavão, mas a fila andava assim mesmo. Desorientado, bagunçava as aulas. Apenas na aula de arte ficava quieto. Nas demais, preenchia o lugar de castigo na diretoria. Ficava sentado olhando a diretora trabalhar. Não havia nenhum mal nisso. O ruim era ver os outros no recreio brincando. Aqui e acolá um(a), de longe, olhava em minha direção e balançava a mão para cima e para baixo. Uma forma de simbolizar a surra moral. Ficou de castigo! Ficou de castigo! Não podia nem revidar senão piorava a situação.

 

Não existia orientação pedagógica. Aprenda ou desista. Ame-o ou deixe-o. Pra frente Brasil, salve a seleção! Nem sabia que muitos estavam de castigo sendo torturados no Doi-codi. Tivesse nascido quinze anos antes, era lá que eu estaria. Ninguém sabia disso. Só divulgavam o sucesso da transamazônica sendo aberta. Quando eu crescer, vou trabalhar lá. Motorista de caminhão. Caminhão naquela época era luxo. Motorista tinha o mesmo status de atual presidente de multinacional. Cresci... nem uma coisa nem outra. Fico agora contando em quanto tempo preencho uma tela de computador criando estórias. A propósito, esta levou três semanas.            

 

 

 


 

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 24/12/2020   16:58  

showdemamulengos@gmail.com

Um comentário:

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