Afeição
Ano passado frequentava a porta da sala de aula uma linda menininha do quinto ano. Os olhos ebony que falavam sem que ela precisasse abrir a minúscula boca de lábios pálidos.
- Próximo ano vou ser sua aluna!
- Sim. Se Deus quiser!
Por ser eu uma professora-formiga (amo adoçar os dias daqueles que com muito orgulho chamo de meus) pensei :
- Ela é uma abelhinha que quer um pouco desses doces, embora nunca tenha lhe dado sequer um pirulito. Ao menos sei de cor o seu nome...ainda que pela mesma raíz etmológica, o coração saiba.
Era um tempo em que ainda existia calendário e eis que chegou o dia dela, de fato, ser minha. Primeiro dia de aula e ela saltitante pelos corredores da escola com seus olhinhos expressivos e corpinho menor que a idade. Chrónos, lhe desarticulou o corpo da passagem dos dias, mas Kairós e Aíôn lhes deram um tempo sagrado e eterno, sem medida precisa, onde as horas não passam cronologicamente e com isso ela chegou ao sexto ano com a alegria que sentíamos ao passar no vestibular. Uma alegria legítima!
Nessa época podíamos abraçar e falar vendo a boca articular as palavras. Assim num intervalo e outro ela corria ao meu encontro, trocávamos um abraço e em seguida:
- É a senhora agora?
Até que chegou o dia que eu, ela e todos os coleguinha conversamos e trocamos elogios ,falamos de nós, traçamos planos, olhei os cadernos novos, expliquei que ali era o início de um novo tempo.
Talvez nesse momento um anjo caído tenha dito amém e eis que o tempo das delicadezas deu lugar ao medo e foi decretado que todos os planos fossem suspensos.
E ela? aquela menininha de olhinhos jabuticabais...
Pois, dentro de um nó de marinheiro virtual ela "deu" com meu número de telefone e passou a me enviar mensagens.
Parece que Kairós e Aíôn a protegem. Ela segue sem "covidar". Oxalá, continue assim.
- Professora, hoje é feriado, mas é um dia lindo e eu vou fazer as tarefas.
- Tô com saudade!
- É segunda que as aulas voltam?
- É quando?
Algumas vezes ela diz coisas que doem...
- Tô com saudade de escrever do quadro!
Ontem foi dia dos namorados. Ela não perde nenhuma oportunidade de sermos melhores amigas e sem nenhum propósito ou adequação, não hesitou:
- Feliz dia dos namorados, professora!
O nome disso é afeição
Escuto Zeca Baleiro -Nalgum lugar - e peço a Deus que proteja meus meninos e meninas.
"(...) Nada que eu possa perceber neste universo iguala o poder de tua intensa fragilidade cuja textura compele-me com a cor de seus continentes (...)"
Luzia Pessoa de Araujo
Texto tocante, Luzia. Parabéns por ele e pelo belissimo trabalho feito na escola e fora dela. Antes, vc cuidava essencialmente do corpo; hoje cuida de mentes em fromação e o faz da melhor maneira. (Gilberto Cardoso dos Santos)
ResponderExcluirMe emocionei muito. Lindo texto! Parabéns titia!
ResponderExcluirSomente um ser humano como você, minha querida amiga, poderia extrair em meio a simplicidade de uma sala aula, um texto (Poema) com tamanha sensibilidade!!
ResponderExcluirÉ bonito de se ver a relação que vc estabelece com seis alunos, parabéns Luzia!
ResponderExcluirO texto é tão tocante, que não sei como devo me expressar, pois não quero quebrar a magia desse momento!
ResponderExcluirAo menos um sorriso do bobo seus textos me arrancam, mas não apenas um sorriso, pois, são camadas de sentimentos e pensamentos. É invejável sua capacidade de 'brincar' com as palavras, sem perder de vista o trágico contexto atual e social. Com certeza essa aluna e muita outras e outros aspiram ser iguais a você, um(a) professor(a)! Parabéns!
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