quinta-feira, 11 de junho de 2020

SEMPRE SUBLIME


                                                        


 Sempre Sublime (Maria Goretti Borges)

Quando o coadjuvante assume o papel, não pela sua interpretação, performance artística ou coisa o que o valha, mas pela importância e complexidade da história de seu personagem na teia da trama, do quanto de atenção e interesse ele consegue despertar, do quanto as entrelinhas falam, o não dito se expressa, comunica-se sem que no entanto os outros personagens sejam menores ou menos curiosos. Essa é a leitura que faço do personagem Grandfather no filme Uma Vida Iluminada de Liev Schreiber, baseado no livro ”Tudo se Ilumina” de Jonathan Safran Foer. Na busca incansável pelo remonte da história de sua família judia, Jonathan, personagem principal, um jovem americano, colecionador de memórias, cruza com Grandfather e Alex numa Ucrânia angustiada, recém aberta para o mundo (desintegração da URSS em 1991), devastada, 60 anos pós Segunda Guerra Mundial. Jonathan necessita lembrar para não esquecer, Grandfather camufla para sobreviver. Histórias entrelaçadas, no passado e no presente!
Lançando mão de subterfúgios, Grandfather, que teve uma formação edificada a partir dos ensinamentos da Mitzvot – conjunto dos mandamentos judaicos que constam na Torá -  se diz antissemita e trabalha transportando judeus pelo território ucraniano que buscam por seus antepassados e suas histórias. A história dos judeus na Ucrânia se entrelaça com a própria história da Ucrânia. Grandfather, num holocausto constante, permeia sua vida de um misto indecifrável. O personagem adota um bullying reverso, a negação identitária, um sequestro cultural e espiritual!
Sem compartimentos externos e internos suficientes para acomodar a contradição “judeu/antissemita”, o avô mesmo assim, continua exercendo sua fuga do mundo real: Um velho ranzinza, mal humorado, falso cego, que rejeita estupidamente o trabalho que faz, que se nega à promoção do diálogo em família, etc. Supõe-se que esse seria o pensamento de Grandfather: “se o diálogo não promove o que me convém, a imposição do silêncio se torna uma via de comunicação”. Dois sentimentos em relação ao avô permeiam a família: o amor por uma cadela guia e o desprezo pelos judeus. Apesar de toda estupidez expressa, seu neto Alex consegue fazer uma leitura do avô por inteiro, ou seja, nem todo o dito ou gesticulado corresponde à inteireza desse ser. Das frestas do cativeiro cintilavam raios de luz!
                O que levou o Grandfather a adotar uma vida clandestina, uma orfandade de si, uma dificuldade em ser, uma obscuridade cotidiana? Até quando esse homem conviveria com tão complexa dubiedade? Teria tentado matar o homem velho para ressuscitar um homem novo? esse pensamento seria ainda mais mortal? “Ninguém põe remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo tira parte da veste, e fica maior a rotura”(Mateus 9:16). Além da morte física, existem outras formas de se morrer!
Assim como o personagem do filme, quantos de nós atuamos a partir do confisco da nossa subjetividade? Se faz necessário retirar o véu, a cortina, rejeitar a máscara, ser protagonista de si mesmo! “Longe se vai/sonhando demais/mas onde se chega assim/vou descobrir o que me faz sentir/ eu, caçador de mim”(Nilton Nascimento). Essa caçada deve ser uma constante, pouso em terra firme, distinção entre realidade e devaneio. “ Antes de acessar a verdade pela razão, você pode acessá-la pela intuição. Por isso, quando perceber a inquietude que dela advém, conceda-lhe atenção, decifre seus sinais”(Fábio de Melo).
O mestre Cartola advertiu a sua neta para a possibilidade do sequestro da sua subjetividade, perda de sua identidade! “Preste atenção, querida/ Embora eu saiba que estás resolvida/ Em cada esquina cai um pouco a tua vida/ em pouco tempo não serás mais o que és”. Dois avós, um da ficção outro da vida real, ambos constando a importância da plenitude, da autonomia que cada um deve ter de si mesmo.
Grandfather teve a sua identidade recuperada, o seu pertencimento refeito! Alex, seu neto, ao encontrá-lo morto numa banheira em Trachimbroad, confessou para Jonathan, nunca tinha visto o avô assim. Ele havia se desfeito de sua carranca, se despido do personagem, um semblante de paz. Em Trachimbroad reencontrou seu povo, sua história, a reconciliação consigo mesmo, a possiblidade de ficar para sempre com os seus, a fuga da negação do seu eu. Grandfather não voltou atrás, encontrara a ocasião propícia para reescrever a sua história, conquistar a admiração de sua família, reintegrar o seu povo. Sempre é tempo para recomeçar, caminhar para além da antessala!
Refletindo a partir de versos do poema “Tabacaria” de Fernando Pessoa, pode-se constatar uma tomada de consciência do personagem num determinado instante. Que essa consciência nos venha o quanto antes!









                                

9 comentários:

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  3. Incrível como fez a ligação das personagens com o contexto poético e reflexivo.

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  4. Não conheço o livro, pela resenha, muito bem escrita por sinal, já estou colocando na minha lista de leitura futura. Parabéns.

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  5. Quantos de nós não nos revestimos de uma negação de si mesmo, para poder escapar do inescapável. Sim, inescapável, pois não podemos escapar de nós mesmo. Muito bom!

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  6. Excelente, digna mestre, ou melhor; sublime. Sempre articulada na observação das conexões de diferentes abordagens. Muito agradável sua escrita. Parabéns ������

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  7. Resenha bem tecida, capaz de nos dar a dimensão exata da profundidade de seu enredo e nos deixar inquietos,instigados para ver o filme, ou ler o livro que inspirou a obra cinematográfica. Talvez seja essa a nossa angústia mais autêntica: reencontrar-se consigo mesmo. Parabéns! Minha nota é 1000.

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  8. A resenha da professora Goretti Borges entrelaça o contexto histórico do filme e a vida, vivida em clandestinidade, da personagem descrita. Com a suavidade poética em suas palavras a autora da resenha nos inquieta sobre retomarmos a nossa identidade e refazer a nossa história. Assim, concordo com Francisco Medeiros quando ele diz "talvez seja essa a nossa angústia mais autêntica", o (re)encontro consigo mesmo.

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