sábado, 9 de maio de 2020

Canto Alegretense Liliane Mendonça



Canto Alegretense

Liliane Mendonça
25/04/2020


Sou gaúcha, mas moro fora do RS há exatos 30 anos. No entanto, minha cultura primeira – e aqui vamos falar de música – remete ao cancioneiro gaúcho tradicionalista, além de outros gêneros, claro. Tenho o hábito de ouvir músicas enquanto faço meus trabalhos domésticos, e muitas vezes as busco na internet. Então, certo dia, há poucos meses, não querendo as músicas do mundo, mas as da minha infância, digitei no Youtube o nome da música que eu queria ouvir Canto Alegretense. Comecei a ler as opções de intérpretes disponíveis e dei com uma versão da mesma em francês. Imediatamente “cliquei” nessa opção e fiquei absolutamente encantada com o que vi e ouvi. No clipe da música, o cantor não usava os trajes tradicionalistas gaúchos, como costumam fazer os intérpretes locais, mas calças jeans e etc., embora as demais pessoas do clipe estivessem pilchadas, ou seja, ou com vestido de prenda, ou com bombacha, bota, lenço, etc.
Meu encantamento foi imediato. A forma natural e intensa como o artista se apropriou da obra, da letra, do ritmo, do vocabulário regional, enfim, e os transpôs para sua versão francesa, foi muito criativa.
O Canto Alegretense é uma música composta por Antônio Augusto Fagundes (letra) e por Bagre Fagundes (melodia) muito conhecida no estado do Rio Grande do Sul, chegando a ser considerada, por muitos, um segundo hino gaúcho. É conhecida principalmente na interpretação do grupo Os Fagundes, formado pelos músicos Euclides Fagundes Filho – o Bagre Fagundes – e seus filhos Paulinho, Neto e Ernesto.
Isto posto, devo dizer que a tradução para o francês, que me encantou, foi feita por Alix Georges[i], haitiano que mora em Porto Alegre desde 2006 e que, além de professor de francês, também é músico. Georges traduziu a música para usá-la em suas aulas de francês, a versão francesa é, portanto, direcionada aos brasileiros. Fez uma escolha inteligente, já que a música é muito conhecida, em Porto Alegre, onde ele mora e essa escolha acabou instigando não só seus alunos, como também saiu das paredes da escola para a televisão[1] e jornais[2]. Na internet há vários vídeos de programas jornalísticos dos quais ele participou como entrevistado, e outros em que canta, programas musicais. Observamos que a maior criatividade do professor está na escolha do vocabulário em francês, já que fez – intencionalmente – uma tradução bastante literal da letra da música.
Alix Geroges nunca leu Haroldo de Campos, nem os textos literários, nem os teóricos, porém sua atitude faz lembrar, em alguma medida, o pensamento de Campos.
Tradução de poesia é, pois, substituição de um código especialíssimo e fragílimo por outro de análoga natureza e propriedades. Trata-se de um complexo decifrar para um novo e complexo cifrar. Roman Jakobson adverte: “em poesia as equações verbais são promovidas à posição de princípio construtivo do texto”, donde só ser possível traduzir poesia através da transposição criativa (perspectiva, 2013, p. 24)

Quando Georges universaliza dentro do idioma francês, as expressões regionalistas do Rio Grande do Sul, possibilita a compreensão de quase toda a letra da música para quem fala francês. Quase toda a letra, pois permanecem incógnitas palavras da versão francesa, tais como gaoucho-brésilien, já que a palavra gaoucho não existe em francês, e também vemos que o significado de mauresque (relativo a ou próprio do mouro 'povo árabe-berbere') e pedra-moura (pedra escura, no dialeto gaúcho) são diferentes. Seja como for, o professor foi assertivo e a tradução teve uma repercussão muito positiva. A versão de Alix ficou conhecida em Porto Alegre, provavelmente, por causa de sua sábia decisão de não traduzir o título da música, o que faz com que sua versão francesa apareça junto com a brasileira quando alguém digita na internet o título “Canto Alegretense”. Aliás, foi essa sua intenção, segundo apuramos.
No trabalho de tradução, como averiguamos, Alix teve mais dificuldades com os regionalismos, como era de se esperar. Expressões como quebradas do Inhanduí, Camoatim de mel campeiro, e algumas outras foram difíceis de compreender e, por isso mesmo, de traduzir.
Para traduzir é preciso se relacionar com o texto, pensar o texto, compreender o texto, transformar o texto e produzir um novo texto. Isso costuma não ser fácil, ainda que possa ser muito prazeroso.
O resultado da versão francesa de Canto Alegretense[3], é inspirador, empolgante e muito agradável aos ouvidos, como a original, criativa, e, pelo menos para mim, muito bonita. Acredito que não haverá para esse professor barreiras culturais ou musicais na sua trajetória.
Muito obrigada, professor Alix Georges.



[i] É haitiano. Enquanto ainda morava no Haiti, logo depois de terminar o ensino médio, Alix começou a procurar um país para estudar, ele queria conhecer outras culturas e aprender outros idiomas. Surgiu a oportunidade de ir para a Rússia, estudar medicina, ele não queria ir para um lugar tão frio, mas mesmo assim tentou, só que o processo burocrático era muito demorado, e nesse meio tempo, o Centro Universitário Metodista Ipa, no Rio Grande do Sul, ofereceu doze bolsas de estudo no Haiti. Alix participou do processo seletivo e passou. Cursou, no Ipa, engenharia da computação e depois de formado decidiu ficar no Brasil porque gostou muito do país em si. Inicialmente, seu plano era voltar para o Haiti depois de formado. Canto Alegretense em francês:






10 comentários:

  1. Que delícia esse texto de Liliane Mendonça, fiquei com muita vontade de ouvir a música.

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  2. Lindo texto!! Parabéns. Posso te dizer que conhecendo Alix Georges e sendo franco-brasileira, o trabalho dele foi de altissima qualidade. Sem contar que a pessoa é muito agraďável. Baita cara!! Um abraço gaúcho prá ti!

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  3. Parabéns pelo texto Liliane, tema interessante e abordado de forma muito inteligente.

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  4. Meu querido amigo Alix Georges você é um exemplo de integração multicultural e internacional! Parabéns a você e à autora deste artigo. Temos que divulgar ações positivas e pessoas exemplares Abração a vocês!

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  5. Que gostosa essa leitura! Parabéns pelo texto!

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  6. Que leitura instigante!!!! Precisamos de mais textos assim, ricos e deliciosos!!!! Parabéns Liliane, amei!!!!!

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  7. Uau!!! Que leitura interessante para um sábado de quarentena!! E a música espetacular!! Tanto a original quanto a versão de Alix George, que foi muito feliz na versão em francês!! Parabéns pelo texto de altíssima qualidade Liliane Mendonça e a você Alix, que inspirou a autora a esse belo texto!

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  8. Não sou gaúcha e desconhecia a música, mas após ler o seu texto, acessei e fiquei maravilhada. Parabéns por nos apresentar uma canção tão representativa e a ótima análise em relação à versão para a língua francesa. Em tempos de autoritarismos e guerras de narrativas, precisamos praticar o que você nos ensina: conhecer e compreender, compreender e respeitar as diferenças!

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  9. Lendo este texto e escutando esta linda canção da minha terra, traduzida e executada com notável perfeição, fiquei divagando, repleto de satisfação, no poder encantador da poesia. A sensibilidade e o talento de Alix Georges, somados à aguda percepção poética da Liliane Mendonça, que, diga-se, é uma excelente tradutora da língua de Flaubert, nos trazem uma esperança nestes tempos turbulentos que vivemos. É na força da arte que encontramos refúgio contra a brutalidade da vida. E perceber a delicadeza com que Alix dedilha e canta os versos dos Fagundes, em um idioma tão bonito como o francês, nos traz uma paz que se completa em si mesma quando lemos essa crônica muitíssimo bem escrita. Parabéns ao músico. Parabéns à cronista. Parabéns aos que sabem apreciar um bom clássico...

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