Canto Alegretense
Liliane Mendonça
25/04/2020
Sou gaúcha, mas moro
fora do RS há exatos 30 anos. No entanto, minha cultura primeira – e aqui vamos
falar de música – remete ao cancioneiro gaúcho tradicionalista, além de outros
gêneros, claro. Tenho o hábito de ouvir músicas enquanto faço meus trabalhos
domésticos, e muitas vezes as busco na internet. Então, certo dia, há poucos
meses, não querendo as músicas do mundo, mas as da minha infância, digitei no Youtube
o nome da música que eu queria ouvir Canto
Alegretense. Comecei a ler as opções de intérpretes disponíveis e dei com
uma versão da mesma em francês. Imediatamente “cliquei” nessa opção e fiquei
absolutamente encantada com o que vi e ouvi. No clipe da música, o cantor não
usava os trajes tradicionalistas gaúchos, como costumam fazer os intérpretes
locais, mas calças jeans e etc., embora as demais pessoas do clipe estivessem pilchadas,
ou seja, ou com vestido de prenda, ou com bombacha, bota, lenço, etc.
Meu encantamento foi
imediato. A forma natural e intensa como o artista se apropriou da obra, da
letra, do ritmo, do vocabulário regional, enfim, e os transpôs para sua versão
francesa, foi muito criativa.
O Canto Alegretense é uma música composta por Antônio Augusto Fagundes (letra) e por Bagre Fagundes (melodia) muito conhecida no
estado do Rio Grande do Sul, chegando a ser considerada, por muitos, um segundo
hino gaúcho. É conhecida principalmente na interpretação do grupo Os Fagundes, formado pelos músicos
Euclides Fagundes Filho – o Bagre Fagundes –
e seus filhos Paulinho, Neto e Ernesto.
Isto
posto, devo
dizer que a tradução para o francês, que me encantou, foi feita por Alix
Georges[i],
haitiano que mora em Porto Alegre desde 2006 e que, além de professor de
francês, também é músico. Georges traduziu a música para usá-la em suas aulas
de francês, a versão francesa é, portanto, direcionada aos brasileiros. Fez uma
escolha inteligente, já que a música é muito conhecida, em Porto Alegre, onde
ele mora e essa escolha acabou instigando não só seus alunos, como também saiu
das paredes da escola para a televisão[1] e
jornais[2].
Na internet há vários vídeos de programas jornalísticos dos quais ele
participou como entrevistado, e outros em que canta, programas musicais. Observamos
que a maior criatividade do professor está na escolha do vocabulário em francês,
já que fez – intencionalmente – uma tradução bastante literal da letra da
música.
Alix Geroges nunca leu
Haroldo de Campos, nem os textos literários, nem os teóricos, porém sua atitude
faz lembrar, em alguma medida, o pensamento de Campos.
Tradução de
poesia é, pois, substituição de um código especialíssimo e fragílimo por outro de análoga
natureza e propriedades. Trata-se de um complexo decifrar para um novo e complexo cifrar. Roman Jakobson adverte: “em poesia as equações verbais são
promovidas à posição de princípio construtivo do texto”, donde só ser possível
traduzir poesia através da transposição criativa (perspectiva, 2013, p. 24)
Quando Georges
universaliza dentro do idioma francês, as expressões regionalistas do Rio
Grande do Sul, possibilita a compreensão de quase toda a letra da música para
quem fala francês. Quase toda a letra, pois permanecem incógnitas palavras da
versão francesa, tais como gaoucho-brésilien, já que a palavra gaoucho
não existe em francês, e também vemos que o significado de mauresque (relativo a ou próprio do mouro 'povo
árabe-berbere') e pedra-moura (pedra escura, no dialeto gaúcho) são diferentes. Seja como
for, o professor foi assertivo e a tradução teve uma repercussão muito
positiva. A versão de Alix ficou conhecida em Porto Alegre, provavelmente, por
causa de sua sábia decisão de não traduzir o título da música, o que faz com que
sua versão francesa apareça junto com a brasileira quando alguém digita na
internet o título “Canto Alegretense”. Aliás, foi essa sua intenção, segundo
apuramos.
No trabalho de tradução,
como averiguamos, Alix teve mais dificuldades com os regionalismos, como era de
se esperar. Expressões como quebradas do
Inhanduí, Camoatim de mel campeiro,
e algumas outras foram difíceis de compreender e, por isso mesmo, de traduzir.
Para
traduzir é preciso se relacionar com o texto, pensar o texto, compreender o
texto, transformar o texto e produzir um novo texto. Isso costuma não ser
fácil, ainda que possa ser muito prazeroso.
O
resultado da versão francesa de Canto Alegretense[3],
é inspirador, empolgante e muito agradável aos
ouvidos, como a original, criativa, e, pelo menos para mim, muito bonita.
Acredito que não haverá para esse professor barreiras culturais ou musicais na
sua trajetória.
Muito obrigada,
professor Alix Georges.
[i] É haitiano.
Enquanto ainda morava no Haiti, logo depois de terminar o ensino médio, Alix
começou a procurar um país para estudar, ele queria conhecer outras culturas e
aprender outros idiomas. Surgiu a oportunidade de ir para a Rússia, estudar
medicina, ele não queria ir para um lugar tão frio, mas mesmo assim tentou, só
que o processo burocrático era muito demorado, e nesse meio tempo, o Centro
Universitário Metodista Ipa, no Rio Grande do Sul, ofereceu doze bolsas de
estudo no Haiti. Alix participou do processo seletivo e passou. Cursou, no Ipa,
engenharia da computação e depois de formado decidiu ficar no Brasil porque
gostou muito do país em si. Inicialmente, seu plano era voltar para o Haiti
depois de formado. Canto Alegretense em francês:
Que delícia esse texto de Liliane Mendonça, fiquei com muita vontade de ouvir a música.
ResponderExcluirLindo texto!! Parabéns. Posso te dizer que conhecendo Alix Georges e sendo franco-brasileira, o trabalho dele foi de altissima qualidade. Sem contar que a pessoa é muito agraďável. Baita cara!! Um abraço gaúcho prá ti!
ResponderExcluirParabéns pelo texto Liliane, tema interessante e abordado de forma muito inteligente.
ResponderExcluirMeu querido amigo Alix Georges você é um exemplo de integração multicultural e internacional! Parabéns a você e à autora deste artigo. Temos que divulgar ações positivas e pessoas exemplares Abração a vocês!
ResponderExcluirQue gostosa essa leitura! Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirQue leitura instigante!!!! Precisamos de mais textos assim, ricos e deliciosos!!!! Parabéns Liliane, amei!!!!!
ResponderExcluirUau!!! Que leitura interessante para um sábado de quarentena!! E a música espetacular!! Tanto a original quanto a versão de Alix George, que foi muito feliz na versão em francês!! Parabéns pelo texto de altíssima qualidade Liliane Mendonça e a você Alix, que inspirou a autora a esse belo texto!
ResponderExcluirNão sou gaúcha e desconhecia a música, mas após ler o seu texto, acessei e fiquei maravilhada. Parabéns por nos apresentar uma canção tão representativa e a ótima análise em relação à versão para a língua francesa. Em tempos de autoritarismos e guerras de narrativas, precisamos praticar o que você nos ensina: conhecer e compreender, compreender e respeitar as diferenças!
ResponderExcluirOuve o canto gauchesco e haitiano
ResponderExcluirLendo este texto e escutando esta linda canção da minha terra, traduzida e executada com notável perfeição, fiquei divagando, repleto de satisfação, no poder encantador da poesia. A sensibilidade e o talento de Alix Georges, somados à aguda percepção poética da Liliane Mendonça, que, diga-se, é uma excelente tradutora da língua de Flaubert, nos trazem uma esperança nestes tempos turbulentos que vivemos. É na força da arte que encontramos refúgio contra a brutalidade da vida. E perceber a delicadeza com que Alix dedilha e canta os versos dos Fagundes, em um idioma tão bonito como o francês, nos traz uma paz que se completa em si mesma quando lemos essa crônica muitíssimo bem escrita. Parabéns ao músico. Parabéns à cronista. Parabéns aos que sabem apreciar um bom clássico...
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