quarta-feira, 1 de abril de 2020

A HORA DO PESADELO - José da Luz Costa



A HORA DO PESADELO[1]
José da Luz Costa
Dez anos se passaram.
O açude público de Santa Cruz é hoje um montão de terra revirada. No seu leito voltou a correr livre o rio Trairi.
Águas passadas não movem moinhos. Saudosismo enche os olhos, mas não enche açudes.
Atualmente, a cidade está próxima a enfrentar novo flagelo. Outro desafio para o governo municipal.  Ontem a fúria das águas levou a cidade a uma catástrofe. Hoje a falta d’água levará a cidade a uma tragédia. Ontem havia excesso. Hoje há escassez.
O que será de uma casa sem água?
Acordar numa casa sem água é algo alarmante. No banheiro, a pia não jorra, a descarga fica inútil, o chuveiro não funciona, a roupa usada se amontoa. Surge um ar de mofo e de azedo. Na cozinha, a louça se empilha na pia. O fogão se engordura. A geladeira cheira mal. Chegam as moscas e mosquitos. Aumenta a sujeira incômoda. Aparecem os ratos e as baratas.
Enfim, a casa inteira se transforma numa prisão fétida e desagradável.
O que será de uma cidade sem água?
Viver numa cidade sem água é como tentar sobreviver num deserto sem oásis.
As escolas paralisam as aulas. Aumenta a ignorância. Os hospitais fecham suas enfermarias. Aumentam as doenças. As fábricas desativam suas máquinas. Acresce o desemprego. Os ginásios não abrem seus parques de esportes e recreação. Aumenta a vadiagem juvenil. Os bares e botecos escancaram suas portas. Aumenta a bebedeira. Os órgãos de governo suspendem seus expedientes. E piora a crise do serviço público. As igrejas fecham suas portas. Cresce a incredulidade.
Enfim, seca a cacimba, esgota-se o poço, esvazia-se a cisterna. Explode o desespero. Não existe o trem das águas.
À cidade ninguém chega. Todos querem sair. Vende-se de tudo. Nada se compra. Come-se pouco. Dorme-se menos.
Os animais agonizam. Morrem.
A cidade torna-se um canteiro de lixo. Os urubus sobrevoam as periferias urbanas. O povo se apavora. Começa o êxodo forçado. Os cordões de gente.
Velhos que gemem. Crianças que choram.
Os dias passam lentamente. A ventania sopra quente, varrendo a poeira das ruas. O horizonte surge a cada manhã límpido e abrasador. Mãos trêmulas se apegam aos rosários. Preces e promessas.
As janelas vão se fechando. As portas já não se abrem. As praças silenciam. A cidade se esvazia. As caravanas partem em todas as direções. O destino é a água. Na despedida, olhares, acenos, adeus para a cidade fantasma. Partem os vivos, ficam os mortos.
Ironia da sorte: a cidade que ficara 4 anos “sem” prefeito, agora fica com prefeito por mais 4 anos, sem população.
No sertão, a política começa pela água.
Desculpem-me por encerrar esta mensagem assim...
É porque também estou indo embora. Vai saindo o comboio derradeiro.
Já não há destinatário nem ultimato. Apenas aviso hoje a quem ler esta que não se trata de um sonho.
Se não vierem as chuvas de janeiro, todos de Santa Cruz vão saber que estou falando de um pesadelo em plena luz do dia.
Deus nos acuda!



[1] Crônica publicada na coluna CENA URBANA, de Vicente Serejo, no Jornal Diário de Natal, em 04/11/1992.

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