A HORA DO PESADELO[1]
José da Luz Costa
Dez anos se passaram.
O açude público de Santa Cruz
é hoje um montão de terra revirada. No seu leito voltou a correr livre o rio
Trairi.
Águas passadas não movem
moinhos. Saudosismo enche os olhos, mas não enche açudes.
Atualmente, a cidade está
próxima a enfrentar novo flagelo. Outro desafio para o governo municipal. Ontem a fúria das águas levou a cidade a uma
catástrofe. Hoje a falta d’água levará a cidade a uma tragédia. Ontem havia
excesso. Hoje há escassez.
O que será de uma casa sem
água?
Acordar numa casa sem água é
algo alarmante. No banheiro, a pia não jorra, a descarga fica inútil, o
chuveiro não funciona, a roupa usada se amontoa. Surge um ar de mofo e de
azedo. Na cozinha, a louça se empilha na pia. O fogão se engordura. A geladeira
cheira mal. Chegam as moscas e mosquitos. Aumenta a sujeira incômoda. Aparecem
os ratos e as baratas.
Enfim, a casa inteira se
transforma numa prisão fétida e desagradável.
O que será de uma cidade sem
água?
Viver numa cidade sem água é
como tentar sobreviver num deserto sem oásis.
As escolas paralisam as aulas.
Aumenta a ignorância. Os hospitais fecham suas enfermarias. Aumentam as
doenças. As fábricas desativam suas máquinas. Acresce o desemprego. Os ginásios
não abrem seus parques de esportes e recreação. Aumenta a vadiagem juvenil. Os
bares e botecos escancaram suas portas. Aumenta a bebedeira. Os órgãos de
governo suspendem seus expedientes. E piora a crise do serviço público. As
igrejas fecham suas portas. Cresce a incredulidade.
Enfim, seca a cacimba,
esgota-se o poço, esvazia-se a cisterna. Explode o desespero. Não existe o trem
das águas.
À cidade ninguém chega. Todos
querem sair. Vende-se de tudo. Nada se compra. Come-se pouco. Dorme-se menos.
Os animais agonizam. Morrem.
A cidade torna-se um canteiro
de lixo. Os urubus sobrevoam as periferias urbanas. O povo se apavora. Começa o
êxodo forçado. Os cordões de gente.
Velhos que gemem. Crianças que
choram.
Os dias passam lentamente. A
ventania sopra quente, varrendo a poeira das ruas. O horizonte surge a cada
manhã límpido e abrasador. Mãos trêmulas se apegam aos rosários. Preces e
promessas.
As janelas vão se fechando. As
portas já não se abrem. As praças silenciam. A cidade se esvazia. As caravanas
partem em todas as direções. O destino é a água. Na despedida, olhares, acenos,
adeus para a cidade fantasma. Partem os vivos, ficam os mortos.
Ironia da sorte: a cidade que
ficara 4 anos “sem” prefeito, agora fica com prefeito por mais 4 anos, sem
população.
No sertão, a política começa
pela água.
Desculpem-me por encerrar esta
mensagem assim...
É porque também estou indo
embora. Vai saindo o comboio derradeiro.
Já não há destinatário nem
ultimato. Apenas aviso hoje a quem ler esta que não se trata de um sonho.
Se não vierem as chuvas de
janeiro, todos de Santa Cruz vão saber que estou falando de um pesadelo em
plena luz do dia.
Deus nos acuda!
[1]
Crônica publicada na coluna CENA URBANA, de Vicente Serejo, no Jornal Diário de
Natal, em 04/11/1992.
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