MEMÓRIAS
DE UM LEITOR – Jailson Lucena
Sou filho
de um contador de histórias e de uma apaixonada por uma boa narrativa. Me
entendi por gente ouvindo meu pai contar histórias reais ou inventadas
praticamente todas as noites da hora do jantar até o momento em que íamos
dormir. Já a minha mãe não perdia uma radionovela todas as tardes. Parava tudo
que estava fazendo e ai de nós (eu e meu irmão mais novo) se fôssemos
incomodá-la. Acho que talvez seja por isso que pai e mãe se davam tão bem,
compartilhavam uma sintonia quase perfeita, desfrutavam uma afinidade
grandiosa. Tudo isso por causa das histórias que ele contava.
Herdei o
gosto dos dois. É por isso também que as narrativas, primeiro as orais e depois
as escritas, acabaram influenciando tanto minha vida. Uns versos que traduzem
bem essa minha condição estão na primeira estrofe de Mundo grande, de Carlos Drummond de Andrade:
“Não, meu coração
não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem
as minhas dores.
Por isso gosto tanto
de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
por isso frequento
os jornais, me exponho
cruamente nas
livrarias:
preciso de todos.”
Preciso
me contar para suportar o peso da minha vida e da minha história, para só assim
compreendê-la, ressignificá-la.
Compartilho esse fardo com aqueles que encontro pelo caminho. Não sei escrever
livros, como Drummond, por isso tento me traduzir em palavras para minhas
analistas, para os meus amigos e, às vezes, até para os meus alunos. Estou
sempre me contando, abrindo meu coração.
[...]
Meu primeiro contato com o universo da leitura não posso
precisar. Imagino que tenha sido vendo meu pai e minha mãe tentando decifrar as
anotações que o bodegueiro fazia em pequenas folhas avulsas onde eram anotadas
as poucas contas da nossa família. No entanto, só vim descobrir realmente que
aqueles risquinhos no papel poderiam se transformar em fantásticas histórias
quando, em um domingo, na casa da minha vó, uma tia da cidade, ao olhar para
“livrinhos pequenos”, enchia aquele alpendre de palavras bonitas que narravam
as mais fascinantes aventuras que eu jamais ouvira falar.
A partir
daí, todos os pedaços de papel que vinham na feira, embrulhando alguma
mercadoria, passaram a ser objetos de minhas “leituras”. Em voz alta, eu fingia
ler histórias sobre o universo em que eu vivia ou sobre outros, imaginários,
melhores e mais bonitos. Embora desconhecesse determinados mecanismos de
funcionamento da língua escrita, eu já apresentava algum nível de letramento,
conforme afirma Soares:
[...]
a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros, finge lê-los,
brinca de escrever, está rodeada de material escrito e percebe seu uso e
função, essa criança é ainda ‘analfabeta’, porque não aprendeu a ler e a
escrever, mas já penetrou no mundo do letramento,
já é, de certa forma, letrada.
(SOARES, 2014, p. 24)
Vendo
aquela minha empolgação, meu pai me matriculou em uma escola muito distante do
sítio em que morávamos. Frequentei apenas três meses por causa da distância,
mas foi o tempo suficiente para eu me alfabetizar. No ano seguinte voltei à
escola. Era o ano de 1983, eu tinha oito anos e, naquela escola rural com as
classes multisseriadas, que funcionava numa casa de fazenda, um universo se
abria aos meus olhos, muito além daquelas duas serras e daquela estrada que
limitavam o horizonte na frente da minha pequena casa.
Como eu
já sabia ler um pouco, comecei a explorar os quartos escuros da casa da minha
vó onde deixara de funcionar há alguns anos uma escola. Lá, eu ia encontrando,
misturados com muita poeira, cartazes do MOBRAL e pedaços de revistas e livros
antigos. Tudo eu lia, porém, me intrigava bastante o fato de eu ler muitas
palavras, mas não saber o que a maioria delas significava. Em casa, as dúvidas
também continuavam, pois eu não entendia muito o que queriam dizer os rótulos
dos produtos, principalmente as caixas de fósforos ARGOS, minha leitura diária.
Descobri, mais de vinte anos depois, que Argos é o nome do cachorro de Ulisses, personagem da Odisséia. Já a expressão latina “hoc
signo vinces in”, que tem na logomarca do produto, desconheço o significado até
hoje. E foi assim que eu comecei a ampliar o meu entendimento do mundo e da
vida, oscilando entre a clareza das palavras simples e o mistério das que
remetem a mundos jamais imaginados por mim. E assim também tem sido até hoje:
ora as palavras me revelam parte dos mistérios da vida, ora elas apontam para
segredos profundos, que me deixam ainda mais confuso. O encantamento que eu
tinha pela palavra escrita era inerente a minha personalidade em formação. O
que não sabia era o impacto que o aprofundamento no conhecimento dessa
tecnologia ia me causar nos aspectos emocional, espiritual, profissional e
financeiro ao longo da minha vida, pois, segundo Soares:
Socialmente
e culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que era quando analfabeta ou
iletrada, ela passa a ter uma outra condição social e cultural – não se trata
propriamente de mudar de nível ou classe social, cultural, mas de mudar seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura – sua relação
com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-se diferente.”
(Idem, p. 37)
O menino
inseguro, medroso, sensível e chorão, que eu era, agora encontrava um terreno
onde podia caminhar com segurança, quase senhor de si. A escola era esse lugar,
sobretudo porque eu tinha uma companheira e aliada: a minha professora Memem.
Baixinha, afetuosa e competente no que fazia, ela reconhecia, valorizava e
incentivava os meus progressos com as letras. Tratava todos os alunos com
carinho e eu, perto dela, me sentia especial, pois ela não levava em conta o
fato de eu ser um dos alunos mais humildes da escola. Na segunda série, às
vezes, ela já dividia comigo a lição dos meus colegas da alfabetização ou da
primeira série. De todos os professores, com os quais eu me identifiquei,
talvez seja com ela que eu me pareço mais.
Os
livros nessa escola, eram poucos e os textos simples, direcionados para alunos
de escola rural com conteúdos sobre higiene, cultura e trabalho. Nessa época, a
minha diversão era decorar poemas populares que uma prima possuía em um
caderninho. A minha bisavó sabia-os de cor, declamava-os para essa minha prima
que os anotava em seu caderno e depois me emprestava. Por causa da métrica
simples e do conteúdo dramático, lá estava eu com eles na cabeça. E, no caminho
da escola, declamava-os em voz alta para meu irmão mais novo enquanto
brincávamos ou corríamos com medo de raposas ou de assombrações.
Em 1985,
minha professora casou-se e nos abandonou. No mesmo ano, como eu não me
identificava com a nova professora, fui expulso da escola por mau comportamento.
Passei um ano sem estudar e, por causa disso, meu pai decidiu morar em outro
sítio para que eu e meu irmão estudássemos.
O que
mais me chamava a atenção na nova escola era o livro didático, que trazia um
conteúdo básico de quarta série, o que supria as minhas curiosidades. Lá tinha
alguns livros infanto-juvenis. Entre eles eu li “As aventuras de Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe, e fiquei dias e
dias imaginando um final diferente para a história ou sonhando encontrar uma
ilha deserta para viver nela as aventuras do personagem-herói.
[...]
Tive a honra de estudar com grandes mestres como o
professor Marcos Agra, com quem aprendi muito, sobretudo sobre a gramática da
Língua Portuguesa, minha maior deficiência. As disciplinas de Literatura me
levaram aos clássicos universais que até então eu desconhecia. Influenciado
pelos professores e por alguns colegas, passei a desfrutar do universo de
Kafka, Sthendal, Balzac, Tolstói, Dostoiévski e tantos outros.
O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.
ResponderExcluirCharles Bukowski.
Quando Charles Bukowski tentou se tornar escritor, ele conseguiu publicar apenas dois contos. Frustrado, resolveu beber. Por dez anos. Charles quase morreu de úlcera. Finalmente, ele se acomodou numa rotina de empregado dos correios. Por mais dez anos.
Enquanto trabalhava nos correios, já com 49 anos, a pequena editora alternativa Black Sparrow Press ofereceu-lhe um contrato. Ele aceitou e disse: “Eu tenho duas escolhas: ficar neste emprego e enlouquecer ou virar escritor e morrer de fome. Eu decidi morrer de fome.” Quando terminou seu primeiro romance, Cartas na rua, ele estava desempregado há um mês. Acabou publicando milhares de poemas, centenas de contos e seis romances. E não morreu de fome.
Parabéns Jailson não desista, siga em frente que pelo menos você terá um leitor que sempre irá te aplaudir e desejar muito sucesso, pois eu também tenho este sonho de um dia escrever pelo menos alguns contos, só que não tenho a sua habilidade e a sua qualificação, as palavras já não surgem e fluem como deveria, não conheço a gramatica como deveria conhecer, como você conhece, então siga em frente, um abraço.
leitura maravilhosa e ispiradora ate da vontade de escrever também, mesmo sem ter a mesma habilidade das letras.
ResponderExcluirParabéns, linda história.
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